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Foto do escritorRafael Torres

A emancipação da mulher: um olhar acerca do relatório da ONU e os discursos de Thomas Sankara e Samora Machel

Por Rafael Torres*



Em 25 de novembro de 2024 (Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres) foi divulgado o relatório da ONU Mulheres e da UNODC, intitulado de “Feminicídios em 2023: Estimativas Globais de Feminicídios por Parceiro Íntimo ou Membro da Família”, que constatou que houve 85 mil mortes de mulheres de forma intencional no ano passado. Desse número, 60% foram perpetrados pelo companheiro íntimo ou membro familiar, o que resulta em 140 mulheres que tiveram suas vidas ceifadas por dia, ou uma a cada 10 minutos. 


No dia em que o relatório foi divulgado, coincidentemente, estava fazendo a leitura do discurso de um dos maiores revolucionários que já pisaram nesse globo. Thomas Sankara foi um dos líderes que tirou Burkina Faso – àquela altura chamada de República do Alto Volta – das mãos imperialistas e possibilitou ao país africano ver ganhos reais para sua população através do socialismo, como o declínio nas taxas de analfabetismo e o acesso a serviços e comida. Em 8 de março de 1987, poucos meses antes de ser assassinado, Sankara pronunciou o discurso intitulado “A libertação das mulheres: uma exigência para o futuro”[1], e ele nos proporcionará parte da argumentação em resposta ao relatório supracitado.  


Thomas Sankara, revolucionário burquino assassinado covardemente após retirar o povo de Burkina Faso do controle colonial. Disponível em: https://jacobin.com.br/2023/08/o-thomas-sankara-que-eu-conheci/


Para definir o porquê Sankara é importante para o feminismo revolucionário, outro autor africano pode nos guiar. Samir Amin, economista egípcio, escreve sobre uma discussão (no sentido mais amistoso da palavra) que teve com o burquino em uma visita ao país. Para o egípcio, Sankara era “realmente simples, direto, aberto, responsável e disposto a escutar[...]” porém, acrescenta “Além disso, verdadeiramente feminista, insistindo na importância da reviravolta da moral em favor da igualdade dos sexos” (AMIN, 2020). 


Abordando o relatório, devemos entender a ONU enquanto instituição intercontinental e que responde aos interesses norte-americano, isso deve ser muito bem delimitado, pois nunca iremos nos deparar com algum relatório ou estudo da organização que vá introduzir, em seu projeto de resolução, conceitos ou colocar na linha do horizonte qualquer mínima ideia que ultrapasse o campo da social-democracia, o que já é muito radical para o imperialismo. E é precisamente o modo de produção baseado na exploração que permite e possibilita a violência de gênero, entretanto nada é dito sobre. 


“É certamente devido ao materialismo dialético que projetamos nos problemas da condição da mulher a mais forte luz, o que nos permite definir o problema da exploração da mulher dentro de um sistema generalizado de exploração” (SANKARA, 2020, p. 384)

O capitalismo, conforme citei em meu artigo anterior na Clio Operária[2], é um sistema de exploração consumado pelos países imperialistas; um sistema de exploração e opressão de uma classe sobre outra; e um sistema de exploração e, sobretudo, opressão a nível familiar, em casa, da mulher pelo homem[3]. O entendimento que a mulher possui de si é conectado ao contexto econômico e social, e não apenas pela sexualidade ou fatores biológicos. O homem oprime sua mulher, ou qualquer outra mulher de seu cotidiano, sustentado pelo modus operandi do sistema em que vive. A transição de uma sociedade matriarcal para o patriarcado, com o surgimento da propriedade privada, foi o que tornou institucional essa desigualdade (SANKARA, 2020). A condição da mulher, no capitalismo primitivo, era similar à do escravo, mas apresentando mais duas vantagens: fonte de prazer ao homem e reprodutora de novos trabalhadores. À essa jovem mulher o futuro é predeterminado ao nascer, onde será auxiliar da mãe, da dona de casa, enquanto seu irmão poderá se desenvolver em outras atividades cotidianas. 


Com as crises do sistema houve alguns avanços, mas nada que rompesse com a lógica. A mulher, que antes era dominada social e politicamente, passa também a ser no campo econômico. Para homem, essa atitude de dominação da mulher em todos os âmbitos da vida é o ato de recuperação de sua humanidade, explorada e negada pelo sistema na posição de trabalhador; porém, em contrapartida, para a mulher é a dupla silenciação de sua vida: deve silêncio ao patrão no trabalho – como todo trabalhador – e ao marido em casa.  


“Um homem, se é oprimido, encontra um ser para oprimir: sua esposa. Esta é, certamente, uma realidade terrível [...]. Mas esquecemos da mulher negra que padece sob seu homem, este homem que, [...], permite-se desvios reprováveis antes de ir ao encontro daquela que esteve ao seu lado com dignidade, no sofrimento e na miséria” (SANKARA, 2020, p. 391).

Para Sankara, até a própria traição é possibilitada para o homem pelo capitalismo, já que a mulher nada pode falar ou fazer para mudar a situação. 


Ao encarar o tema se torna difícil não lembrarmos da fala bestial do ex-presidente da República, futuro membro do sistema carcerário brasileiro, Jair Bolsonaro, que disse com todas as palavras que, ao ter uma filha mulher, fraquejou[4]. 


Samora Machel, moçambicano e revolucionário, eleito primeiro presidente do país após sua independência. Disponível em: https://desacato.info/samora-machel-tres-poemas/


Já em Samora Machel (1973) a exploração gera, para quem explora e oprime, a sensação de superioridade em relação a sua vítima. Disso decorrem as tentativas de justificar por meios biológicos a supressão feminina. Inserida na exploração, a sensação de posse da mulher pelo homem é também a ideia de posse de alguém que vá cuidar da materialização da vida do seu senhor; em suma, é a posse de uma trabalhadora de forma gratuita, que tudo o que produz é expropriado pelo marido. O homem exprime no lar a exploração que o açoita fora dele. O modo de produção elabora as ferramentas que corrigem a sociedade a seu favor, por isso é importante que a educação e cultura respondam a ideologia dominante, possibilitem a posse de corpos dóceis e silenciosos, como os das mulheres. Essa educação tem por papel fundamental manter a mulher afastada dos meios que a mostraria de que forma ela é submetida à exploração, mesmo fora do trabalho. O monopólio do conhecimento, portanto, é do homem (MACHEL, p. 235). 


“O processo de alienação mental atinge o ponto culminante quando o elemento explorado, reduzido à passividade total, já não consegue imaginar que possa existir uma possibilidade de libertação, e ele próprio se torna um agente difusor da teoria da resignação e passividade” (MACHEL, 236).

A mulher, assim como o trabalhador açoitado pelo neoliberalismo, não pode acreditar que há uma possibilidade diferente daquela experimentada até então. Se há possibilidade, há também meios para se pensar a concretização da possibilidade.  Portanto, precisamos dizer, como não o fez o relatório da ONU, que a condição que a mulher enfrenta é intimamente um resultado da contradição entre ela, enquanto agente histórico humano, e o sistema de exploração, o mesmo que a retira da vida pública, de oportunidades iguais, de ganhos financeiros melhores, de uma educação igualitária. A correção dessa exclusão da mulher das decisões sociais só poderá ser feita radicalmente, por um processo revolucionário que destruirá as bases que se formaram enquanto a exploração é institucional. Através da Revolução, a educação e a cultura, propriedades do grande capital e que conferem o caráter excludente da sociedade, serão revitalizadas, e atenderão aos interesses das mulheres, colocarão suas vontades na ordem do dia.


Cabe ainda um último parágrafo para explicitar a ideia que ora ou outra é difundida por um feminismo carente de leitura crítica, que coloca homens e mulheres em caminhos opostos, como se não pertencessem ao mesmo grupo majoritariamente explorado. Desviar o olhar do verdadeiro inimigo da mulher, a colocando contra o sexo oposto, resulta em uma luta vazia de significado histórico, e por favor, não entendam isso como uma reivindicação da masculinidade e do machismo, já que é um homem que escreve, mas sim, como um chamado a luta conjunta, já que quem escreve também é um companheiro de trincheira. Também é importante afastar daqui todo oportunismo de utilizar esse artigo para criticar o feminismo, dizendo que a pauta enfraquece o debate, ou afasta homens e mulheres. A luta é conjunta, e a teoria crítica nos fortalece. 


 

*Rafael é editor geral da Clio Operária, historiador, graduando em Serviço Social e educador popular.


[1] O discurso foi proferido para uma manifestação de milhares de mulheres na capital Ouagadougou para marcar o Dia Internacional da Mulher.


[2] Ver “Esquerda e luta de classes, um reavivamento necessário”.


[3] Domenico Losurdo elabora os três níveis de exploração e opressão em “A luta de classes”.


[4] A fala completa é: “Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens, aí no quinto eu dei uma fraquejada e veio uma mulher". A besta-fera se dirigiu dessa forma em uma palestra proferida na sede do Clube Hebraica, no Rio de Janeiro.


Referências


MANOEL, Jones e LANDI, Gabriel (org). Revolução africana, uma antologia do pensamento marxista. São Paulo, SP: Autonomia Literária, 2019. 


Uma mulher ou menina é morta a cada 10 minutos por seu parceiro íntimo ou outro membro da família. ONU Mulheres, Nova York, 25 de nov. de 2024. Disponível em: <https://www.onumulheres.org.br/noticias/uma-mulher-ou-menina-e-morta-a-cada-10-minutos-por-seu-parceiro-intimo-ou-outro-membro-da-familia/l>. Acesso em: 26 de nov. de 2024.


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