Por Márcio Paulo*
Eu quero ver
Quando Zumbi chegar
O que vai acontecer
Zumbi é senhor das guerras
É senhor das demandas…
Jorge Ben Jor - África Brasil (Zumbi) - África Brasil (1976)
Partindo do pressuposto que raça, classe e gênero coexistem de forma conflituosa e desafiadora, é possível perceber que o pensamento de Angela Davis em seus escritos, entrevistas e toda a sua produção, que estamos cada vez mais próximos de um estado de luta não só nos ringues, mas no campo das ideias e como é possível adentrar essas lutas de diferentes formas.
Sem esquecer o trivial, e considerando o hodierno (o novo), é necessário pensar de formas diferentes quanto às formas de lutas, mas é necessário lembrar dos porquês lutamos e para quem lutamos.
A visão futurística de Sun Ra nos mostra que é possível nos aproximarmos de uma utopia de viver fora da camada terrestre, enquanto se existe dentro uma lógica tradicional, como é o jazz. Inovar dentro do que já está posto é a nossa função como pensadores de hoje que olham para o amanhã.
O principal pensamento da Ângela Davis sobre é, quando em uma de suas entrevistas ao ser questionada se a luta é interminável, ela responde que “as lutas produzem novas lutas e que a luta não é algo que irá cessar”. A busca pela liberdade no pensamento de Davis é talvez uma busca tão genuína quanto a de Nelson Mandela, uma busca que ruma para a liberdade e não para o aprisionamento.
Uma longa jornada pelo não encarceramento da população negra pode ainda soar como um pensamento até sonhador, mas se é possível pensar, então é possível fazer. A questão prática do pensamento de Davis aqui: é quanto estamos dispostos a lutar e a produzir, de forma científica e inteligente?
Parafraseando o pensador brasileiro Milton Santos, quando perguntado se seria difícil ser negro e intelectual no Brasil, e sua resposta brilhante é que “é difícil ser negro no Brasil”. O ponto fundamental do pensamento de Milton Santos é que até quando não estamos produzindo ou lutando nos ringues, ser negro faz com que estejamos sempre em movimento.
Talvez a ideia aqui até parece supérflua ou avoada, mas o primordial é ir além de uma sobrevivência ideológica, é ir de encontro às teorias que tem nos violentado das mais diferentes formas.
Todas as periferias do mundo têm em seu bojo a busca pela liberdade, não só a física, mas a integralidade de decisões, e é necessário pensar as liberdades além das grades para os pedaços mais remotos da Terra, desde Moçambique que tende a governos de direita e cerceadores da paz, até pensar em nossos vizinhos latinos com essa guinada a um ufanismo desmedido e doentio.
Fundamentalmente é necessário descolonizar os pensamentos de uma forma prática e esclarecedora, Angela Davis propõe pensamentos para que possamos rumar em direção de uma liberdade que será necessária a continuação da luta diária pelo espaço e pela defesa das ideias.
A dialética usada por Nei Lopes para definir que o negro é um corpo só é mais que necessária e coaduna com o pensamento de Angela Davis para que não caiamos em armadilhas, para que possamos continuar a caminhar enquanto um corpo uníssono e que consegue se movimentar dentro dos espaços, para que proteja as suas conquistas e não perca tempo com as pequenezas colocadas em nossos caminhos. A direita histérica e problemática sempre espera que estejamos discutindo a pauta colocada por eles.
E aqui temos que estar atentos para continuar a lutar, como Malcolm X colocou que a luta é necessária, e talvez seja a última morada da nossa civilidade.
Algumas armadilhas têm sido colocadas e aqui peço a licença para que estejamos atentos e vigilantes quanto esses enganadores, pois algumas vezes discussões sobre raça vem desacompanhado de uma leitura histórica e dialética da construção de um pensar coletivo, como diz Sueli Carneiro “a construção da classe e da raça vem de um somatório de pretos e pardos, e não de pretos ou pardos”. É uma construção social de anos e anos que tentam violar.
A violação não é apenas da memória daqueles que lutaram e não estão mais, e sim da memória social de uma construção cheia de complexidades, logicamente que toda discussão precisa ser levantada, mas deixo claro que pretos e pardos continuam sendo os alvos preferidos de uma violência estatal, e que continuamos a ser alvos do estado que nos empurra e isola.
Angela Davis propõe uma discussão para o não encarceramento de uma população negra, e nela está composta por ambos, pretos e pardos fazem parte da estatística e com números semelhantes. É preciso ter o cuidado e a ciência de que separar ambos é a pauta mais quente, pedida pelos grupos que não estão nessa pauta, mas assim como todos querem palpitar como se estivesse na mesa do bar enquanto desqualificam os alheios.
O suprassumo dessa discussão é que percebamos que a nossa luta segue interminável porque elas se reciclam e remontam a nova sociedade que vamos construir e continuamos a construir. Felizmente a consciência de classe e de raça é parte intrínseca do jovem negro que Milton Santos projetou, que estamos caminhando juntos para sair de um local que nunca nos foi pedido para estar.
A ideia da “Partitude” é apenas uma desorganização de um movimento histórico, retirar pardos do mesmo campo de classificação de negros/pardos e tentar criar uma nova categoria é no mínimo um erro, pois negar a negritude desses e criar uma nova identidade é algo fora de um pensamento organizado.
Sendo que mais do que um milhão de vezes já foi demonstrado que pretos e pardos sofrem agruras praticamente idênticas pela violência do estado e do capital, a grande questão aqui que envolve desde Angela Davis a Nei Lopes é que negar a negritude é diminuir a luta e não somar a ela, por isso que as nossas lutas produzem novas lutas.
Um dos pensamentos mais sinceros que podemos ter, e que já foi citado anteriormente no texto, é que até quando iremos discutir as pautas criadas pelos nossos próprios fantasmas ou iremos servir de apoio para os escafandristas que surgem com teses absurdas e que apequenam a nossa comunidade?
É necessário pensar tal qual Mestre Marçal: “Vou comendo pela beira do prato, enquanto o meio esfria”
*Márcio Paulo é comunicador e pesquisador, membro da Clio Operária e do Ponta de Lança podcast, pesquisador sobre música e cultura no continente africano e sua diáspora.
Referências:
DAVIS, Angela. A Liberdade é uma Luta Constante. Boitempo Editorial; 1ª edição
Munanga, Kabengele. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil. 1999
Carneiro, Sueli. A miscigenação racial no Brasil. In: Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. 2011
“Datafolha: 60% dos pardos não se consideram negros”. Link G1: https://g1.globo.com/google/amp/politica/noticia/2024/11/24/datafolha-60percent-dos-pardos-nao-se-consideram-negros.ghtml
MUNANGA, Kabengele, “A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. Entrevista”, Estudos Avançados, vol. 18, n. 50, 2004, p. 51-56
MUNANGA, Kabengele, “L'anthropologie au Brésil et les limites de l'hégémonie occidentale” In: DAVELUY, Michelle & DORAIS, Louis-Jacques (eds.), À la périphérie du centre - Les limites de l'hégémonie en anthropologia, Montréal, Éditions Liber, 2009, p. 43-51.
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