Por Charisse Burden-Stelly, PhD[1]
Tradução por Pedro Silva*
Originalmente publicado no Black Agenda Report
Em uma importante contextualização de “Moving Towards Life” [Em direção à vida], a Dra. Charisse Burden-Stelly examina como a questão da Palestina mudou a relação entre June Jordan e Audre Lorde.
Imagem em destaque: Um homem chorando em meio aos escombros de sua casa no sul do Líbano, em algum momento entre 1982-1988. Arquivo digital do Museu Palestino, coleção da Sociedade do Crescente Vermelho Palestino (PRCS).
Em um comício em Detroit, Michigan, na quarta-feira, 7 de agosto de 2024, Kamala Harris repreendeu os manifestantes pró-Palestina. Enquanto eles gritavam “Kamala, Kamala, você não pode se esconder! Não votaremos no genocídio!”, a autoproclamada “comandante” retrucou: “Sabe de uma coisa? Se vocês querem que Donald Trump vença, então digam isso. Caso contrário, eu continuo.” Essa demonstração aberta de desprezo da candidata presidencial pelo Partido Democrata ocorreu exatamente duas semanas após ela se encontrar com Benjamin Netanyahu e reiterar o compromisso inabalável dos Estados Unidos com o direito da entidade colonial (“Israel”) existir e, por extensão, de continuar seu genocídio de palestinos intensificado pela guerra. As ações de Harris demonstram não apenas desrespeito ao povo palestino, mas também profundo desprezo pelas forças que se opõem ativamente à sua aniquilação.
No mesmo dia em que Harris se indispôs com ativistas palestinos, um artigo intitulado “Moving Towards Life” foi publicado no LA Review of Books. Ele justapôs as posições de duas feministas negras, June Joran e Audre Lorde, sobre a questão da libertação palestina, e analisou as consequências para as relações entre as duas, dadas suas posições opostas. Por exemplo, Jordan escreveu uma carta aberta criticando sua amiga íntima Adrienne Rich, que assumiu a posição de uma feminista sionista após o início da Guerra Israel-Líbano em 1982 e equiparou o antissionismo ao antissemitismo. Lorde, Barbara Smith e outras feministas judias e negras impediram a publicação da carta de Jordan, alegando que ela assassinava a reputação de Rich, promovia a divisão entre feministas negras e judias e demonstrava insensibilidade com o povo judeu. Enquanto em sua carta Jordan assumiu a responsabilidade pela violência da entidade colonial e pelo sofrimento palestino como cidadã e contribuinte dos EUA que não fez o suficiente para impedir o “holocausto e genocídio”, Lorde et. al se envolveu em uma defesa identitária de Rich e do “povo judeu” que estava mais preocupada com o tom e a “insensibilidade” de Jordan do que com a agressão contínua e intensificada pela guerra colonialista contra os palestinos.
Dois conceitos, imperialismo interseccional e reducionismo da identidade, são relevantes para entender o uso que Lorde e suas contrapartes feministas fizeram da identidade negra e judaica para reprimir a crítica justa de Jordan à entidade colonial. O imperialismo interseccional descreve as maneiras pelas quais o imperialismo dos EUA é racionalizado, legitimado e continuado ao empregar a linguagem da interseccionalidade, nomeando pessoas racializadas e de minorias para posições estratégicas e dando destaque para indivíduos marginalizados como porta-vozes do império. O reducionismo da identidade depende de apelos reacionários e desprovidos de um viés de classe às identidades interseccionais e à “experiência vivida” individualizada para abafar a análise estrutural e material, o materialismo histórico e dialético e o comprometimento político e ideológico como bases legítimas para entender um fenômeno específico.
Não muito diferente do nosso momento atual, “Moving Towards Life” demonstra o fim da solidariedade do sionismo e os riscos de apoiar a libertação palestina. A posição pró-Palestina de Jordan prejudicou sua carreira, mesmo entre outras feministas de cor, enquanto a relativa aquiescência de Lorde sobre o assunto antes de 1989 garantiu sua visibilidade internacional. Da mesma forma, Kamala Harris é defendida por uma grande parcela de mulheres e feministas dos EUA, mesmo que seu endosso ao genocídio, em palavras e ações, seja profundamente impopular com grande parte da população global. Seu apoio declarado aos direitos reprodutivos das mulheres dos EUA parece ter precedência sobre sua política externa genocida. Apesar de seu apelo morno por um cessar-fogo, o governo Biden liberou outra parcela de financiamento para ataques contra palestinos — desta vez 3,5 bilhões de dólares — para a compra de armas e equipamentos militares dos EUA. Nem mesmo quarenta e oito horas depois, a entidade colonial cometeu um dos seus massacres mais hediondos desde 7 de outubro de 2023, assassinando e mutilando centenas de mulheres, crianças e homens palestinos na escola e mesquita al-Tabi'in no bairro de Al-Daraj, na Cidade de Gaza, uma zona designada como segura. A resposta de Harris à carnificina foi reafirmar o direito da entidade colonial de “ir atrás dos terroristas do Hamas” e pedir a libertação de reféns (israelenses, e não palestinos) enquanto reprovava humildemente o número de “vítimas civis”.
Uma lição importante da polêmica Lorde-Jordan é que nunca é tarde demais para tomar uma posição de princípio. Eventualmente, Rich, Lorde e Smith se tornaram antissionistas e apoiaram a resistência palestina. Elas tinham Jordan como modelo, dado seu “compromisso intransigente e [...] disposição em perder amizades e oportunidades ao se opor ao lobby de Israel”. Para aqueles de nós, então, que são inabaláveis em nosso apoio à libertação palestina completa por todos e quaisquer meios necessários, é nossa tarefa histórica conquistar adeptos para esta posição — e para a luta contra o imperialismo dos EUA e a dominação ocidental de forma mais ampla. A campanha presidencial de Kamala Harris é um momento crucial para permanecermos firmes em nossa posição e combater o uso do imperialismo interseccional e do reducionismo da identidade pela classe por lideranças negras para disciplinar o silêncio e sequestrar lutas por libertação e autodeterminação em nome de “proteger nossas liberdades, garantir justiça e ampliar oportunidades”.
Para entender melhor a polêmica entre Jordan e Lorde, confira abaixo o artigo de Magloire:
Em direção à vida
Por Marina Magloire[2]
Tradução Pedro Silva*
Originalmente publicado no LARB.
Explorando a correspondência de June Jordan e Audre Lorde, Marina Magloire reúne arquivos de uma desavença feminista negra sobre o sionismo.
Em fevereiro de 2024, o escritor palestino Mosab Abu Toha postou uma foto no Instagram de uma pilha de livros que seu irmão, Hamza, havia resgatado dos escombros de uma casa recentemente bombardeada em Gaza. No topo da pilha, em meio a lajes de concreto quebradas e barras de ferro cortadas, havia uma cópia de The Collected Poems of Audre Lorde [Poemas Escolhidos de Audre Lorde] (1997). É compreensível que os palestinos sejam atraídos pelas críticas contundentes de Lorde ao racismo e ao imperialismo. Versos como “Então é melhor falar / lembrar / que nunca fomos feitos para sobreviver”, de seu poema “A Litany for Survival” [Uma Litania para a Sobrevivência], têm uma ressonância poderosa para a resistência palestina à desinformação e censura israelenses, por exemplo. Em seu frequentemente citado discurso de formatura em Oberlin em 1989, feito três anos antes de morrer, Lorde abordou a situação do povo palestino diretamente: “Encorajar seus congressistas a pressionar por uma solução pacífica no Oriente Médio e pelo reconhecimento dos direitos do povo palestino não é altruísmo, é sobrevivência.” No entanto, muitas pessoas não sabem que a crítica de Lorde à ocupação israelense e sua breve afirmação dos direitos palestinos neste discurso não foram uma característica constante de sua vida e militância.
A jornada de Lorde para uma posição pró-Palestina foi lenta e hesitante. Em Zami: A New Spelling of My Name [Zami: Uma Nova Grafia do Meu Nome] (1982), Lorde descreve seu otimismo juvenil com a criação de Israel: “[O] Estado de Israel representava uma esperança recém-nascida para a dignidade humana.” Esse otimismo juvenil não deveria ser surpreendente: em 1948, Lorde tinha apenas 14 anos e era aluna da Hunter College High School, onde estava cercada por sionistas jovens, ansiosos e recém-formados. Foram, de fato, suas amizades que moldaram a maneira como ela pensaria sobre a questão pelo resto de sua vida. Em 1982, ela estava sendo pressionada por um conjunto conflitante de forças. Fortemente do lado palestino estava a colega poeta de Lorde, June Jordan. Lorde e Jordan tinham muito em comum: ambas eram feministas queer negras filhas de imigrantes das Índias Ocidentais em Nova York, e também eram ex-professoras da City University of New York. Ambas acabariam morrendo de câncer de mama. Até 1982, Jordan e Lorde eram conhecidas calorosas, bem como colegas e interlocutoras; eles compartilhavam alinhamento político em muitas questões relacionadas a raça e gênero. Mas as últimas palavras escritas de Jordan para Lorde, após um extenso desacordo epistolar sobre o sionismo, foram: “Você se comportou de forma errada e covarde. Isso é responsabilidade sua. Que você […] viva bem com isso.”
Jordan tem sido muito elogiada recentemente como um exemplo da solidariedade de mulheres negras com a Palestina, como evidenciado pelos versos de seu poema de 1982 “Moving Towards Home” : “Eu nasci uma mulher negra / e agora / eu me tornei uma palestina.” Mas o contexto do ano fatídico que inspirou Jordan a escrever este poema — a invasão israelense do Líbano e os massacres apoiados por Israel nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Shatila — raramente é discutido, nem o escopo completo do compromisso vitalício de Jordan com a libertação palestina. Considerando a dedicação de Jordan, por que era o livro de Lorde em meio aos escombros, e não o dela?
Jordan é menos conhecida nacional e internacionalmente do que Lorde, e me parece que suas décadas de apoio inabalável ao povo palestino são parcialmente responsáveis por isso. O antissionismo vocal de Jordan prejudicou sua carreira por quase uma década, resultando em ameaças de morte, perda de oportunidades de publicação e ostracismo social dentro de círculos feministas multirraciais. Mesmo depois de sua morte, a postura pró-Palestina de Jordan a tornou menos cooptável em uma narrativa de diversidade neoliberal na qual a libertação palestina tem sido tabu por décadas. Lorde é famosa pela máxima “Seu silêncio não a protegerá”, mas, neste caso, o silêncio inicial de Lorde sobre a Palestina protegeu sua carreira e sua vida após a morte florescente como uma santa padroeira dos oprimidos. Enquanto isso, as décadas de escrita e defesa de Jordan em nome do povo palestino foram lamentavelmente subestimadas. Jordan escreveu uma vez: “Eu digo que precisamos de uma revolta, uma Intifada, EUA”, e para ela, a Intifada não era uma metáfora. Ao contrário de Lorde, Jordan pretendia que sua escrita fosse uma arma, um ato público a serviço da libertação palestina. Apesar de suas similaridades biográficas, Jordan e Lorde tinham práticas diferentes de solidariedade. Como podemos adicionar nuances à narrativa histórica da solidariedade feminista negra com a Palestina? Afinal, mesmo 40 anos depois, os movimentos de solidariedade baseados nos EUA ainda são ameaçados pelas mesmas linhas errôneas que derrubaram a amizade de Lorde e Jordan.
Em junho de 1982, Israel invadiu o Líbano e iniciou um cerco de nove semanas à capital Beirute, tendo como alvo o movimento regional de resistência palestina. Durante esta guerra e a carnificina subsequente contra refugiados palestinos liderados por grupos paramilitares apoiados por Israel, mais de 20.000 refugiados palestinos e civis libaneses foram mortos. Em seu livro de 2020 The Hundred Years’ War on Palestine: A History of Settler Colonialism and Resistance, 1917–2017 [A Guerra Centenária Contra a Palestina: Uma História de Colonialismo de Povoamento e Resistência, 1917-2017], Rashid Khalidi argumenta que “por causa do apoio americano a Israel e da tolerância às suas ações [...] a invasão de 1982 deve ser vista como um esforço militar conjunto israelense-estadunidense — sua primeira guerra voltada especificamente contra os palestinos”. De volta aos Estados Unidos, publicações da grande mídia como ABC, NBC News, revista Time e The New York Times relataram simpaticamente pela primeira vez a luta palestina e demonstraram indignação com as atrocidades de Israel. Amy Kaplan argumenta em Our American Israel: The Story of an Entangled Alliance [Nosso Israel Estadunidense: A História de uma Aliança Embaraçosa] (2018) que Israel, durante esta guerra, “perdeu a reivindicação de inocência que havia mantido durante guerras anteriores. Sua mensagem não era mais inatacável, e sua visão de mundo não refletia mais suave nem automaticamente a do público do noticiário estadunidense.” Em agosto de 1982, até mesmo Ronald Reagan ligou para advertir o primeiro-ministro israelense Menachem Begin e escreveu em seu diário que “o símbolo da guerra [de Begin] estava se tornando uma imagem de um bebê de 7 meses com os braços arrancados.”
Talvez este tenha sido um momento particularmente insensível para as mulheres americanas expressarem um compromisso com o feminismo sionista, mas as feministas judias nos EUA estavam divididas em relação ao apoio a Israel desde sua criação em 1948 e, na década de 1970, a comunidade feminista mais ampla dos Estados Unidos frequentemente se envolvia em debates acalorados sobre o sionismo em periódicos feministas e em conferências de estudos femininos. Aqui aparece Adrienne Rich, proeminente poetisa lésbica judia e defensora de longa data dos oprimidos. Jordan e Lorde eram amigas queridas de Rich e ambas mantiveram uma correspondência pessoal e profissional de décadas com ela (agora guardada em seus respectivos arquivos). Hoje, Rich é conhecida como uma poetisa antissionista — ela foi ativa em organizações judaicas antissionistas a partir de meados da década de 1980 e, em 2009, endossou um boicote acadêmico e cultural a Israel. Mas no verão de 1982, ela flertou brevemente com a ideia de que talvez fosse possível ser feminista e sionista.
Em uma carta aberta publicada no periódico feminista Off Our Backs em julho de 1982, Rich se juntou a seis mulheres que usavam o apelido coletivo Di Vilde Chayes, “as feras selvagens” em ídiche, em uma carta aberta intitulada “O que significa sionismo?” Todas as signatárias se autoidentificaram como “lésbicas/feministas judias provenientes do Leste Europeu (Ashkenazi)”. Apesar de sua consciência das “complexidades” do deslocamento de palestinos promovido por Israel, Rich e suas co-signatárias foram inequívocas sobre o direito de Israel existir: “O sionismo é uma estratégia contra o antissemitismo e pela sobrevivência judaica. O antissionismo é antissemitismo” (sublinhado no original). Talvez o mais irritante de tudo tenha sido a alegação de que o antissionismo também era racista, “já que se recusa a reconhecer que dois terços dos judeus de Israel são pessoas de cor”. Além do fato de que esta declaração foi escrita inteiramente por judeus americanos brancos, a preocupação com a situação dos judeus de cor ainda parece duvidosa — parece mais uma ferramenta retórica projetada para encerrar o debate com outras pessoas de cor do que uma tentativa genuína de construção de coalizões.
Mesmo depois que a guerra de agressão de Israel contra o Líbano dominou o ciclo de notícias estadunidense naquele verão, Di Vilde Chayes redobrou seu compromisso com o sionismo, publicando uma segunda carta em outubro de 1982 em Off Our Backs e WomanNews. Elas continuaram a se posicionar como “sionistas — comprometidas com a existência de Israel — que estão indignadas com o ataque de Israel a Beirute e estão igualmente indignadas com o antissemitismo mundial que foi desencadeado desde a invasão do Líbano”. Irena Klepfisz, signatária de ambas as cartas, mais tarde lamentou o momento dos escritos, que “nos fez parecer indiferentes aos eventos brutais” da guerra. Muito parecido com sua resposta inicial, até mesmo o remorso de Klepfisz é tingido pelo desejo de “parecer” imparcial ao fazer falsas equivalências entre um antissemitismo não especificado e a realidade concreta de 20.000 árabes massacrados (uma forma de má-fé retórica que persiste até hoje).
Jordan se sentiu traída por essas cartas. Ela era amiga de Rich desde 1976, e sua correspondência pessoal retrata uma profunda camaradagem intelectual na qual as duas poetas trocavam trabalhos, ideias e apoio emocional. Mais tarde, Jordan lembra de ter ficado chocada com a carta de Rich, já que em todas as suas conversas anteriores ela nunca se identificou como sionista nem como judia. Parece que Rich caiu em uma armadilha comum do feminismo dos anos 1980, conforme identificado pela marxista judia Jenny Bourne: “Ser considerada politicamente significou, para as feministas judias, se não uma competição clara com as feministas negras, uma tentativa de pelo menos pular na onda delas e mecanicamente igualar sua luta contra a opressão.” É certamente fácil imaginar Jordan questionando seu vínculo intelectual com Rich neste ponto, particularmente depois que Rich rotulou a postura política do antissionismo como racista, ao mesmo tempo em que reivindicava uma racialização e uma luta pelo Terceiro Mundo que não refletia sua experiência vivida como uma mulher branca estadunidense. As diferenças de poder entre Jordan e Rich — que era mais velha, mais famosa e branca — podem ter exacerbado ainda mais a sensação da primeira de que o apoio da última se baseava na negritude de Jordan como sendo meramente identitária e não política.
“Não deveria surpreender ninguém que nós, negros e pessoas do Terceiro Mundo em todos os lugares, atribuímos importância fundamental à questão da Palestina”, diz Jordan em sua resposta à declaração de Rich. Motivada por sua dor e indignação com os massacres em Sabra e Shatila em setembro de 1982, nos quais milhares de palestinos foram assassinados por grupos de milícias ao longo de dois dias, Jordan escreveu uma carta aberta chamada “Sobre Israel e o Líbano: A resposta de uma mulher negra a Adrienne Rich”, datada de 10 de outubro de 1982. Seu discurso para Rich foi pessoal (ela nomeia Rich sozinha entre os signatários das duas cartas), mas também pedagógico (é uma carta aberta que seria publicada na WomanNews e, portanto, destinada ao público em geral). Usando as palavras “genocídio” e “holocausto”, Jordan expõe a chocante variedade de crimes de guerra cometidos por Israel ao longo de cinco meses — bombas de fósforo, destruição de infraestrutura civil, o massacre em Sabra e Shatila — e critica a falha de Rich em assumir a responsabilidade por essas coisas como resultados tangíveis do sionismo que ela alega defender. Essa ideia de responsabilidade atravessa a resposta de Jordan como um fio desencapado, culminando nesta declaração surpreendente:
"Eu reivindico a responsabilidade pelos crimes israelenses contra a humanidade porque sou estadunidense e o dinheiro estadunidense tornou essas atrocidades possíveis. Eu reivindico a responsabilidade por Sabra e Shatilah [sic] porque, claramente, não fiz o suficiente para deter episódios hediondos de holocausto e genocídio ao redor do globo. Eu aceito essa responsabilidade e trabalho para o dia em que possa ajudar a salvar qualquer outra vida, de fato".
Como Rich não assume a responsabilidade, Jordan a destaca para ela. Esta é talvez a reviravolta retórica mais importante na carta de Jordan, embora não seja reconhecida em respostas subsequentes de outros leitores. Jordan reconhece que fazer parte de um Estado etnonacionalista, seja por nascimento ou escolha, carrega a obrigação de criticar sua violência. O fato de uma mulher negra nascida nesta nação poder fazer esta declaração, com muito mais humildade do que a identificação seletiva e escolhida a dedo de Rich com o Estado israelense, é um testamento das possibilidades transformadoras da política de identidade de Jordan.
A carta aberta de Jordan nunca foi publicada, devido à intervenção de um grupo de feministas negras e judias, incluindo Lorde; ela existe apenas (até onde eu vi) no arquivo não publicado da correspondência de Lorde. Com base em sua carta de apresentação aos editores da WomanNews, Jordan enviou cópias para outras escritoras negras que ela via como amigas ou interlocutoras, incluindo Alice Walker, Toni Cade Bambara e Barbara Smith. Algumas dessas mulheres podem ter fornecido apoio a Jordan por meio de telefonemas ou outras formas efêmeras de comunicação, mas não há cartas de nenhuma delas nos arquivos de correspondência de Jordan do outono de 1982. Longe de apoiar, Smith encaminhou uma cópia para Lorde, que concordou em se juntar a Smith e outras oito mulheres para escrever uma carta aos editores da WomanNews para impedir a publicação da resposta de Jordan, alegando que ela “contribui para uma atmosfera de polarização crescente entre mulheres judias e negras”. (A cópia no arquivo de Lorde parece ser uma xerox da cópia direta de Smith enviada por Jordan, que era encabeçada por uma mensagem escrita à mão: “Querida Barbara, queria que você e Cherríe [Moraga] soubessem que isso está acontecendo. Atenciosamente, j.j.”) Embora concordassem com Jordan que “as duas cartas abertas de Vilde Chayes refletem uma preocupação política insuficiente com o destino do povo palestino”, as signatárias da carta achavam que a escolha de Rich por Jordan era equivalente a um “assassinato de reputação”. Elas argumentaram que Jordan demonstrou “insensibilidade aos judeus como um grupo” ao questionar a autoidentificação de Rich como sionista e apontam o fato de que Di Vilde Chayes escreveu sua segunda carta antes de Sabra e Shatila (embora tenha sido publicada depois) e, portanto, não pode ser acusada de indiferença. Elas lamentam o fato de Jordan “não ter expressado sua raiva em relação à política do grupo de forma responsável”. No geral, a resposta delas parece mais interessada em repreender Jordan por seu tom e timing do que em se envolver com o conteúdo de sua crítica de quatro páginas. (Jordan observa isso em sua resposta: “Que você assuma que eu sabia quando as declarações de Rich foram escritas, em vez de quando elas foram publicadas, e que você pensou que isso deveria importar tanto ou mais do que o que suas declarações públicas disseram, na verdade, são fatos adicionais sobre vocês duas que eu acho bizarros [sic] e repugnantes.”)
Em uma resposta contundente a Lorde e Smith, Jordan escreve:
"Não me chamem de antissemita. Controlem sua arrogância de merda e deixem um pouco de realidade entrar em suas bocas […] Eu debato com vocês duas a qualquer hora e em qualquer lugar sobre quem é realmente [ sic ] inabalável em sua militância contra males equivalentes ao antissemitismo (antijudaísmo e antipalestino e antiárabe, per se) e em sua militância para produzir políticas de coalizão eficazes".
De fato, somente em 1982, as múltiplas expressões de indignação de Jordan contra a guerra no Líbano por meio de poesia, prosa e palestras ecoaram fortemente contra o silêncio e os equívocos das feministas que tentaram suprimir sua carta aberta.
O registro dessa correspondência está guardado no arquivo de Lorde no Spelman College, na pasta que contém sua correspondência com June Jordan. Não há correspondência escrita, no arquivo de Lorde ou de Jordan, entre as duas depois de 1982. Jordan e Rich, por outro lado, reacenderam sua amizade após um intervalo de quatro anos e continuaram próximas até a morte de Jordan em 2002. Em uma entrevista com Peter Erickson em 1994, Jordan detalhou seu desentendimento e a reconciliação com Rich. Quando ambas participavam de um sarau de poesia antiapartheid em Nova York em 1986, Jordan se aproximou de Rich e disse: “Eu detesto completa e absolutamente suas opiniões sobre Israel e te amo.”
Enquanto isso, as cartas enviadas por outras escritoras para Jordan, como Rich, Smith e Alexis De Veaux, às vezes perguntavam, timidamente, coisas como: “Você viu que Audre está doente de novo?”, mas Jordan não escreveu mais cartas para Lorde. Ao contrário de Rich, a rixa Jordan-Lorde não era apenas uma questão das opiniões de Lorde sobre Israel — era também uma traição profundamente pessoal de uma mulher negra por outra. “Tanto para diálogo/apoio/qualquer tipo de comunidade”, Jordan escreveu em sua carta para Lorde e Smith. E, claro, o pessoal era político — a falha de Lorde em se identificar com a luta palestina por suas conexões pessoais com mulheres brancas teve implicações de partir o coração para um movimento de solidariedade no qual Jordan frequentemente se encontrava sozinha, disposta a ser a única voz de crítica em espaços culturais estadunidenses invadidos por sionistas. Em seu ensaio “Life After Lebanon” [Vida Após o Líbano], Jordan fala como foi cercada e assediada por “grandes homens brancos, dois deles poetas israelenses” em um sarau de poesia, e a intervenção de três de suas amigas que a tiraram do local. Ela estava profundamente ciente da necessidade de apoio da comunidade contra as ameaças muito reais que os sionistas poderiam representar para a saúde, segurança e carreiras de antissionistas declaradas. O apoio de Lorde não só poderia ter feito a diferença para Jordan pessoalmente, mas também poderia ter marcado uma pequena, mas importante mudança no cenário político da solidariedade palestina nos Estados Unidos, que só recentemente começou a ganhar mais força no mainstream.
Talvez Jordan tenha se sentido motivada a dar um telefonema para Lorde antes de sua morte, e por causa da natureza do arquivo, seu reencontro não foi registrado. Talvez ela tenha dito: “Eu detesto completa e absolutamente o que a supremacia branca fez conosco e te amo”. Ou talvez, como Alexis Pauline Gumbs observa, sua reconciliação tenha sido, de certa forma, muito tardia — as próximas palavras escritas por Jordan para Lorde foram póstumas, em um tributo não publicado escrito um ano após a morte de Lorde. Jordan reconhece que, apesar das divisões criadas entre elas por ideologias racistas, ela e Lorde estavam se esforçando por um objetivo comum: “Em diferentes pontos, nossas vidas divergiram, assim como nossos caminhos escolhidos para a luta [...] Mas nunca nos desvencilhamos totalmente do combate conjunto contra o ódio e a aniquilação de toda a intolerância”. De sua parte, apesar dessa divergência, Lorde manteve o registro um tanto desfavorável de sua briga com Jordan como parte de seu arquivo meticulosamente autocurado. Por que fazer isso se ela tinha abandonado completamente a amizade delas? Acho que Lorde continuou caminhando com Jordan muito depois que seus caminhos divergiram.
Em seu poema “Intifada Incantation: Poem #8 for b.b.L,” Jordan escreve, “EU ME COMPROMETO / COM O ATRITO E O ENGAJAMENTO / DA PÉROLA.” Essas linhas podem ser tomadas como um mantra para o papel de Jordan em pressionar os membros de sua comunidade a se identificarem e assumirem a responsabilidade pela situação do povo palestino. Talvez possamos até inferir que o eventual antissionismo de Rich, e provavelmente o de Lorde, foi gerado pelo atrito do compromisso intransigente de Jordan, e pelo exemplo de sua disposição em perder amizades e oportunidades ao enfrentar o lobby de Israel. O feminismo negro de Jordan foi baseado na recusa dos privilégios vazios oferecidos pela vida dentro do que ela chamou de “a Casa Grande” dos Estados Unidos, onde os negros têm a oportunidade única de “jogar sal ou arsênico na sopa”. Os conflitos de Jordan deveriam ser (e foram) galvanizadores, uma tentativa de encorajar suas irmãs a usar sua posicionalidade para sabotar a máquina de guerra dos EUA.
Jordan era uma pensadora internacionalista profundamente sofisticada com uma compreensão materialista da solidariedade. Como um holofote, sua poesia e ensaios alternam da África do Sul para a Nicarágua, para Cuba, para o Havaí e para o Iraque, muitas vezes em apoio aos seus movimentos de libertação e autodeterminação. A Palestina se encaixa naturalmente na ampla gama de suas simpatias anti-imperialistas. Poemas como “Moving Towards Home”, “Apologies to All the People in Lebanon” [Desculpas a Todas as Pessoas no Líbano] e “Intifada Incantation” [Encantamento da Intifada], e os ensaios “Life After Lebanon” e “Eyewitness in Lebanon” [Testemunhas Oculares no Líbano], demonstram o longo arco de um compromisso de 20 anos com as lutas anti-imperialistas no sudoeste da Ásia e no Oriente Médio. São obras-primas de sua capacidade de converter vergonha em ação política — de passar pela vergonha da cumplicidade como uma contribuinte estadunidense rumo à responsabilidade de estar entre “Some of Us [Who] Have Not Died” [Alguns de Nós Que Não Morreram]. Em poemas e ensaios posteriores, ela nunca parou de lutar contra a ocupação da Palestina e contra o sentimento antimuçulmano e antiárabe nos Estados Unidos e em Israel. Depois do 11 de setembro, Jordan estava nas últimas dores de sua batalha contra o câncer, mas ainda reservou um tempo para denunciar o racismo e a islamofobia que animavam a guerra contra o terror. Sua amiga, a poetisa libanesa Etel Adnan, uma vez escreveu para ela com aprovação irônica: “Eles nunca perdoam você por pensar que os árabes são seres humanos".
O que torna a solidariedade da Jordan tão duradoura é que ela não estava apenas preocupada com a violência arrasadora contra o povo palestino, mas também foi profundamente inspirada pela resistência palestina. Isso foi bastante radical em 1982, como argumenta Amy Kaplan — apesar da crescente simpatia pelas vítimas palestinas da guerra, “o foco da mídia estadunidense rapidamente mudou do sofrimento dos palestinos para a angústia dos israelenses”, à medida que os sionistas dos EUA começaram a reformular a guerra como uma aberração e uma mancha no nobre projeto final do Estado israelense. Mesmo hoje, uma política centrada na vida palestina, em vez de uma redenção da moral judaica, provou ser pegajosa e divisiva. Debates em torno do uso de frases como “intifada” e “do rio ao mar” mostraram os limites da simpatia pública pelos palestinos como um povo com demandas por um Estado, em vez de vítimas passivas.
Jordan foi notável em sua rejeição a essa estrutura, particularmente na maneira como ela usou a palavra “intifada” em muitos de seus poemas e ensaios. “Intifada Incantation” é enquadrado como um poema de amor enfático escrito em letras maiúsculas — o famoso verso inicial é “EU DISSE QUE TE AMAVA E QUERIA / QUE O GENOCÍDIO PARASSE”. Mas o trabalho não é apenas sobre duas pessoas. Ele toma o povo palestino e sua resistência como ponto de partida para o amor, o lar e qualquer semelhança de vida para uma comunidade global de oprimidos. Vale a pena notar que as forças que cometem genocídio na Palestina e no Líbano são as mesmas que interromperam o amor comunitário entre Jordan e suas colegas feministas negras nos Estados Unidos. As reivindicações poéticas de Jordan tentam lembrar o leitor do verdadeiro significado de intifada, cuja raiz em árabe significa “sacudir”. O que devemos sacudir para abrir caminho para o florescimento do amor?
Nas notas manuscritas de Jordan para seu ensaio de 1990, “Intifada, U.S.A.”, a palavra “INTIFADA” é repetida, como um feitiço, como um refrão de uma música ainda a ser escrita. Na visita de Jordan ao Líbano em 1996, vemos claramente seu comprometimento com a intifada como uma prática. Durante essa viagem, ela tirou muitas fotos nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, os locais das atrocidades contra as quais havia se enfurecido 14 anos antes. Suas fotos e notas focam nos sinais de vida que rastejam teimosamente de volta à paisagem dos campos: varais amarrados entre prédios explodidos, um jovem se abaixando atrás de escadas marcadas por balas, mulheres plantando flores. Como Lorde, encontramos Jordan em meio aos escombros, mas no caso desta última, é sua presença material: seus pés calçados com tênis, suas mãos segurando uma câmera, seu bloco de notas amarelo documentando obedientemente os mártires e aqueles que sobreviveram. Ela não se contentou em apenas lamentar a morte palestina de longe; ela queria sentar na sala de estar que eles criaram no topo das ruínas: “Eu vi uma mulher plantando uma muda de jasmim que provavelmente lidaria com a atmosfera e, possivelmente, floresceria.” O tipo de solidariedade de Jordan é tão árduo quanto o crescimento lento desta jasmim em apuros, e vai muito além do fim do genocídio. Se, como ela diz, “a questão do povo palestino é a questão do valor da vida humana”, Jordan nos ensina a nos mover em direção à vida.
*Pedro Silva é bacharel em Geografia e mestre em Integração da América Latina pela Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Apresenta o podcast Marxismo Periférico.
[1] Charisse Burden-Stelly, PhD - A Dra. Charisse Burden-Stelly é professora associada de Estudos Afro-Americanos na Wayne State University.
[2] Marina Magloire é uma acadêmica de Atlanta e autora de We Pursue Our Magic: A Spiritual History of Black Feminism [Perseguimos Nossa Magia: Uma História Espiritual do Feminismo Negro] (2023).
Comments