Tradução e introdução por Pedro Silva.
Personagem fundamental para o marxismo haitiano e ainda pouco conhecido no Brasil, Jacques Roumain teve uma trajetória intelectual marcada pela afirmação da relação entre o preconceito racial e a luta de classes. Em Queixas do Homem Negro, o autor se dedicou a demolir o discurso racista difundido no coração do capitalismo do século XX: os EUA.
Na imagem: Jacques Roumain (Wikimedia Commons).
Nascido em 4 de junho de 1907, Jacques Roumain ainda é uma figura, infelizmente, pouco conhecida no Brasil. Antropólogo, escritor, jornalista, poeta, filósofo e político, cumpriu um importante papel na conturbada política haitiana do início do século XX, marcada por uma intervenção estadunidense que durou 19 anos (1915-1934), bem como em movimentos que questionavam as ideologias racistas de caráter eugenista que avançavam na época.
Um dos antecessores do movimento Negritude, Roumain é autor de dois poemas de onde Fanon, mais tarde, retira o nome de seu mais emblemático livro, Os condenados da terra. Em Novo sermão negro, escreve: “De pé os condenados da terra/ De pé os presidiários da Fome”. Já em Negros sujos, dispara: “E aqui estamos de pé/ todos os condenados da terra”. Em dezembro de 1928 é detido por suas manifestações na imprensa haitiana contra a ocupação estadunidense. Seis anos mais tarde, fundou o Partido Comunista Haitiano, em 1934, sendo designado Secretário Geral. Um pouco mais tarde acaba condenado à prisão, onde ficou por dois anos por conta de suas atividades políticas. É libertado na mesma época em que o PCH é considerado ilegal, o que o obriga a partir para o exílio na França.
Roumain começa os estudos em antropologia no Instituto de Paleontologia Humana, onde inicia sua importante trajetória como etnógrafo, se dedicando a pesquisas sobre a formação da cultura haitiana. Em 1939 publica Les Griefs de l’homme noir, ensaio onde propõe uma interpretação marxista para a condição da população negra nos EUA. Aliando seus conhecimentos antropológicos e políticos, utiliza esse texto para expor ao mesmo tempo dois fenômenos implícitos no avanço imperialista estadunidense na primeira metade do século XX: o racismo e a luta de classes. Retorna ao Haiti em 1944 para falecer pouco depois.
É com muita satisfação que trazemos a tradução inédita em português de Les Griefs de l’homme noir para o público lusófono, entendendo que, em um contexto onde velhas-novas ideias ganham força, é necessário, mais do que nunca, contar com a força e a coerência teórica de Jacques Roumain.
Queixas do homem negro
por Jacques Roumain
Publicado originalmente como Les Griefs de l’homme noir no volume L’homme de coleur, Collection Présences, Plon, Paris, 1939.
Vacher de Lapouge, que com Gonbineau e Houston Chamberlain forma a Trimúrti dos racistas, vítima de um delírio profético, declarava em 1887 para a Revue d’Anthropologie a singular profecia que segue: “Estou convencido de que, no próximo século, as pessoas se degolarão aos milhões por causa de um ou dois graus a mais ou a menos no índice cefálico. Com este sinal, que substituirá o xibolete bíblico e as afinidades linguísticas, se reconhecerão as nacionalidades, e os últimos sentimentais poderão assistir a grandes extermínios de povos”. Depois dos “pogroms” da Alemanha e a denúncia veemente às “democracias, ninguém ousaria rir destas frases judaizadas ou enegrecidas”.
Do mesmo modo, veremos que pretextos pseudocientíficos, históricos e... bíblicos, servem nos Estados Unidos e mais especialmente no Sul, de proteção e desculpa para a prática do preconceito racial, para as humilhações da segregação, para essa violência judicial que apenas constitui um linchamento legal[1], ou para o desencadeamento da raiva popular, com o propósito de “manter o negro em seu lugar”, quer dizer, na opressão econômica e na indignidade social. Veremos, porém, que as bravatas sobre a proteção da mulher branca, a irremediável inferioridade da raça negra, a missão do homem branco, essa missão que Kipling chamava, com seu imperturbável humor imperialista, de fardo, the white man’s burden, dissimulam um egoísmo de classe egoísta e sem escrúpulos. Veremos, enfim, que o preconceito racial, manejado como um instrumento de divisão, de desvio e de derivação, permite o avassalamento de grandes parcelas da população branca dos Estados Unidos.
Antes de adentrarmos em nosso tema, será necessário proceder a uma classificação sumária do problema a partir do ponto de vista antropológico, e restituir o verdadeiro sentido de certas palavras, empregadas com preguiça espiritual, ignorância ou interesse. É assim que se ouve falar comumente, e nestes últimos tempos com particular insistência, de raças alemã, italiana, francesa; implicando o término raça uma noção de homogeneidade, de pureza sagrada.
Os norte-americanos, que não carecem de originalidade, inventaram, por sua parte, a noção do homem nórdico caucasiano.
Pois bem, se remontamos o curso do tempo, comprovamos, desde o Mesolítico, a presença na Europa de duas raças distintas, que já nesse momento se misturaram. Em efeito, a partir desta fase de transição entre o Pleistoceno e o período atual, que os arqueólogos chamam de Azilien, uma importante modificação étnica da Europa nos é revelada pelas escavações da gruta de Ofnet, situada, por uma ironia da pré-história, na Baviera. Dos trinta e três crânios que ali foram descobertos, vinte e um em condições de serem medidos, foram tirados os seguintes resultados: oito braquicéfalos, oito mesocéfalos e cinco dolicocéfalos. Estes últimos se distinguiam dos do Paleolítico pela associação harmônica da leptoprosopia e da dolicocefalia. E Pittar tem razão ao ver nessa antiguíssima mestiçagem do microcosmos antropológico o que será posteriormente a população da Europa.
Se por outra parte se considera que, desde os tempos mais remotos até nossa época, as migrações, as invasões e as guerras modificaram e complicaram até o extremo o mapa étnico da Europa, em virtude desse processo que Hooton caracterizou de maneira excelente, dizendo que quando duas raças se encontram às vezes se enfrentam, mas sempre se misturam, terá como rigorosamente exata a agradável fórmula de Max Müller: para o etnólogo, existe a raça ariana como para o linguista há um dicionário dolicocéfalo ou uma gramática braquicéfala.
Seríamos razoáveis ao admitir que as raças atuais representam mestiçagens relativamente estabilizadas. E quando essa estabilização se realizou em uma área geográfica delimitada, em certas condições históricas, políticas, culturais e morais, se formou a partir dela uma unidade que constitui a nação. É a nação que se confunde com a raça ao falar de raças francesa, alemã, italiana etc.
Estas considerações preliminares constituem apenas um aparente afastamento de meu tema, pois o que é certo para a Europa também é, em maior medida, para os Estados Unidos, onde numerosos fatores étnicos heterogêneos (ingleses, italianos, holandeses, escandinavos, irlandeses, judeus, escravos, franceses, etc.) vieram a fundir-se no formidável caldeirão demográfico da América do Norte.
Na extraordinária obra-prima de William Faulkner O som e a fúria, encontrei desta passagem de típica impressão:
— Certamente, disse, sou americano. Meus pais possuem sangue francês. É o que explica a forma de meu nariz. Mas sou todo o que há de mais americano.
Se pode transferir este exemplo para cada um dos grupos que acabo de elencar; e é preciso admitir que, em uma proporção muito forte, o chamado americano cem por cento é o resultado de complexos cruzamentos, e aquele que pretenda rebater isso não pode ser, então, mais que noventa e nove por cento idiota, segundo as palavras de Bernard Shaw.
O que não impediu que as fanáticas teses dos Stoddard, Brigham, Grant e McDougal tenham feito nascer nos Estados Unidos o mito do homem nórdico ou caucasiano, colocado sob uma ingênua estratigrafia no topo da humanidade, enquanto o negro ocupa o escalão mais baixo, apenas separado da bestialidade[2].
Como esse povo admirável — e sem dúvida não tenho obrigação de expressar este sentimento, pois em meu país, ocupado por suas tropas na época da pós-guerra imperialista, combati obstinadamente seus representantes —, como esse povo, cuja generosidade e cuja coragem admiramos a cada dia em Roosevelt, pode misturar assim a luz e a sombra, a democracia e a Ku Klux Klan, a liberdade e o linchamento, a clarividência intelectual e o preconceito racial?
Isso que os norte-americanos chamam de “chauvinismo racial” — como veremos ao analisá-lo —, repousa sobre instituições econômicas, sobre as contradições sociais que estas supõem, e sobre o caráter arcaico da economia rural do Sul, separado do Norte hiper industrializado pela linha transversal Mason-Dixon. Mas a interdependência entre estes feitos de base e o preconceito racial, sua expressão ideológica, escapa também, sob a influência dos costumes, de uma propaganda pérfida e do contágio social, ao controle da razão consciente, que o desprezo ao negro se enraíza na mentalidade de milhões de indivíduos como um caráter psicopatológico hereditário.
Em 1619, um navio de comércio com bandeira holandesa ancorava no porto de Jamestown, na Virgínia, e trocava, por mercadorias e produtos alimentícios, uma vintena de escravos negros. Foi apenas um incidente cuja importância passou insuspeita; Le Journal de John Folfe só dedicou ao fato esta frase: “There came in a Dutch man-of-war that sold us Twenty niggers”.
Havia começado a história do negro americano. Quarenta anos mais tarde, em 1662, havia cerca de dois mil negros na colônia. Mas logo as novas terras, abertas para o cultivo, exigiram braços. Em 1790 se contavam setecentos e sessenta mil; em 1830 dois milhões e trezentos mil negros... E em 1832 mais de três milhões de libras de algodão eram exportadas. O traficante de escravos John Hawkins dava graças ao “Deus todo poderoso, por não haver deixado perecer seu escolhido” em um furacão: os negócios andavam perfeitamente bem.
É certo que a partir de 1859 nenhum aporte massivo do exterior veio para aumentar a população negra. O último grupo de madeira de ébano desembarcou neste ano em Savannah.
Os negros, no ano seguinte, já alcançavam a cifra de quatro milhões e quatrocentos mil. Hoje são cerca de treze milhões.
Não nos deteremos no aspecto moral da questão. Isso só apresenta, a rigor, um interesse retrospectivo para o homem cujos ancestrais foram escravos. Para mim, por exemplo.
O fato de a população negra ter quase triplicado em setenta e cinco anos é prova de uma prodigiosa vitalidade. Mas a fecundidade de uma raça não tem nenhuma relação com sua resistência à mestiçagem. Imediatamente depois da Guerra de Secessão, os negros apenas compunham treze por cento da população total. Sem o ódio das raças, em 1938 esta minoria étnica estaria em vias de ser absorvida ou digerida, se se pode dizer. A pesquisa do Instituto Carnegie nas Antilhas, demonstrou que o cuarterón já não se distingue do branco por suas características exteriores e que o octavón[3] pode ser considerado como branco de fato.
O professor Rivet, em um de seus cursos no Museu de História Natural, apontava para esta menor resistência do fator mendeliano entre os negros, mostrando que o Rio de Janeiro, que a apenas um século apresentava uma maioria de gente de cor, havia se transformado em uma cidade branca, por causa, sobretudo, de uma soldadura interna de seus diferentes elementos étnicos, sem que a imigração houvesse tido um papel dominante.
Dessa forma, quando certas boas almas se assustam com a existência de treze milhões de negros nos Estados Unidos, deviam levar em conta que esse número não é “espantoso”, que suscitou um problema em que o preconceito racial vem a significar o mesmo que um reflexo defensivo, mas é precisamente esse preconceito o que permitiu o desenvolvimento e o agravamento de um problema.
Certas teorias, é certo, tendem a colocar o negro em uma categoria zoológica especial, muito oposta à do branco por suas características, embriológicas, morfológicas, psicológicas ou patológicas, para que a mistura de ambas as raças não represente um perigo e um crime.
O bom juízo recomenda reconhecer que o negro se distingue, de fato, do branco. O que resta saber se o que os diferencia constitui os sinais de uma superioridade ou os estigmas da inferioridade. É possível que a observação — entre dezessete caracteres — de um calcanhar geralmente proeminente no embrião do negro, que com muita pouca frequência é semelhante no feto do branco, faça do cuarterón Pushkin um ser particularmente bestial e de um tal doutor de mais além do Reno (“quando ouço a palavra cultura, procuro meu revólver”[4] um tipo de humanidade altamente espiritualizada; é possível que lábios grossos determinaram que o mulato Paul Lafargue não era mais que um sub homem, destilador de veneno marxista; é possível que o apêndice vermiforme, maior e melhor vascularizado nos negros que nos brancos, demonstre que o mestiço José María Heredia deve ser relegado aos baixos fundos agitados da animalidade; é possível que a grande receptividade dos negros à tosse ferina prove com evidente claridade que o doutor Ernest Just, biólogo negro de reputação internacional, deveria ser reintegrado ao destino de sua raça, que é o de lustrar botas e receber em seguida com elas os pontapés que lhe cabem, enquanto que o redator “lilywhite” do Daily News de Greensboro, que escrevia, por ocasião do processo de Dayton: “Prendei esses evolucionistas, infiéis e negadores do inferno, crucificai-os de cabeça para baixo, e teremos por fim um país onde valerá a pena viver”, deveria ocupar uma cátedra na Universidade.
O negro dos Estados Unidos ainda não forneceu nenhum homem digno de ser chamado de gênio, pela razão primordial de que há apenas setenta e cinco anos começou a levar uma vida civilizada sobre o solo norte-americano. Mas hoje, o esplêndido esforço para a cultura do conjunto do povo negro americano produziu: escritores, alguns dos quais são grandes poetas, notáveis ensaístas ou historiadores, como Paul Lawrence Dunbar, James Weldon Johnson, Langston Hughes, Sterling Brown, Jean Toomer, Countee Cullen, Jessie Fauset, Walter White, Carter Woodson, Alain Locke — poderia prolongar esta lista —; sábios como o professor Just e o doutor George Carver, químico eminente; músicos como William Dawson, cuja Sinfonia Popular Negra foi executada pela orquestra da Filadélfia sob a direção de Leopoldo Stokowski; artistas famosos, tais como Marian Anderson, Paul Robeson, Roland Hayes, Daniel Haynes; os criadores de um gênero musical que conquistou o mundo: Armstrong e Duke Ellington; um pintor como Henry Tanner, cujas obras foram adquiridas pelo Instituto de Arte de Chicago e o Museu de Luxemburgo...
O cinema, o music-hall, certa literatura e, na mesma França, um bom número de escritores e jornalistas cuja frivolidade é oferecida, desgraçadamente, ao estrangeiro como exemplo típico do “espírito francês”, popularizaram um negro bobo, servil, ignorante e supersticioso, que apenas possui alma em seus pés de bailarino. Sofremos também, nós, que veneramos profundamente a França, ao comprovar que uma pérfida propaganda consegue, frequentemente, perverter os fatos de tal modo que, aos olhos de vários indivíduos ou através do mundo, Paris, esse ponto de contato ou irradiação da mais alta civilização, não é NotreDame, o Louvre, A Biblioteca Nacional, o povo encantador, trabalhador e generoso, de ateliers e dos bairros industriais, mas os cabarés de Montmartre, a boemia alterada de Montparnasse e o prazer a baixo custo das calçadas.
(De todos os escritores franceses que conheço, Vladmir Pozner[5] é o único que mostrou a verdadeira face do mundo negro norte-americano). Foi dado a esse mundo, apesar de todas as vicissitudes, dos obstáculos aparentemente insuperáveis, uma oportunidade histórica única de provar do que o negro é capaz, e é isso o que ele está fazendo, nas piores condições imagináveis. Em 1865, logo após a Guerra de Secessão, a população negra era praticamente analfabeta. Tomando como referência as estatísticas publicadas por von Luschen[6], em 1863 haviam duzentas escolas dominicais frequentadas por dois mil negros. Em 1938, setenta e cinco anos mais tarde, a porcentagem de analfabetos é de apenas 15%, sendo inferior ao de Espanha, Portugal, Itália e os países dos Bálcãs...
A inauguração da Universidade de Howard ocorreu em um salão de baile abandonado, e a do Instituto Tuskegee em uma igreja e uma cabana. Os primórdios das universidades de Fisk e de Atlanta foram, igualmente, muito modestos: hoje há vinte mil negros formados, dos quais quatro mil são médicos. O número de professores e mestres passa de cinquenta mil.
Seria um erro acreditar que esses resultados são consequência do empenho da administração pública. Não quero sobrecarregar este artigo com estatísticas; contudo, é necessário destacar que, enquanto que uma média de 45 dólares são investidos anualmente em um aluno branco, apenas um terço desse montante é dedicado à educação de uma criança negra. Em alguns estados a diferença é ainda mais sensível. Este tratamento diferenciado é aplicado também à remuneração dos professores. Para não citar mais que alguns exemplos, o salário anual de um professor branco estão, em relação ao de seu colega negro, na lista que segue (os números expressam dólares):
723 e 449 no Arkansas
768 e 260 na Geórgia
1154 e 424 na Flórida
832 e 354 no Alabama
Esta desigualdade, em diferentes graus, existe em todos os estados, sem exceções.
A imensa maioria dos negros vive nos distritos rurais do Sul. As escolas ali são insuficientes, sua estrutura insuficiente. É justo destacar aqui que as subvenções do “Julius Rosenwald Fund” permitiram a construção de cinco mil escolas rurais, e que outras organizações brancas dedicaram mais de um milhão de dólares a esse propósito; mas os negros, por sua vez, participaram na construção dos edifícios escolares com quantia de quatro milhões de dólares, ou seja, algo em torno de cento e cinquenta milhões de francos. É preciso destacar esta benéfica cooperação dos brancos e dos negros; os resultados indicam o que podemos esperar de relações inter-raciais normais.
Mas o fato é que, em grande parte, à iniciativa para o sacrifício, à perseverança dos próprios negros, a seus esforços para se libertar da pesada herança de ignorância legada pela escravidão, à sua intervenção, cada vez que o Estado – o que ocorre com frequência – se mostra descomprometido ou hostil, devemos relacionar esta ascensão intelectual que traduz uma prodigiosa sede se saber.
Paralela a este florescimento no sentido da cultura, a luta pela libertação econômica também é notável. “No presente, como nos séculos vindouros”, escrevia o grande sábio alemão von Luschen, “não posso ver na gente de cor da União mais que uma população preciosa e indispensável, cuja exclusão conduziria necessariamente a uma catástrofe financeira sem precedentes e a um incrível desequilíbrio da vida pública.” Os dados estatísticos que ele apresenta para fundamentar sua opinião revelam o constante progresso do negro norte-americano no domínio econômico. Citarei apenas alguns deles.
Em 1863, a fortuna do conjunto da população negra estava avaliada em vinte milhões de dólares; em 1873, em cinquenta milhões; em 1883, em setenta e cinco; em 1893, em cento e cinquenta; em 1903, em trezentos; em 1913, em setecentos milhões de dólares; e, finalmente, segundo o Negro Year Book de 1931-32, os negros possuíam em 1930 uma fortuna acumulada de mais de dois bilhões e meio de dólares.
É certo que a crise colocou em perigo este extraordinário esforço: um quarto da população negra, ou seja, mais de quatro milhões de indivíduos, caiu no desemprego. Se queremos ter uma ideia da miséria atual do negro, devemos olhar para os camponeses empobrecidos do sul ou para o cenário que nos oferece o Harlem: fora de uma camada superficial, rapidamente removida, de alguns milhares de intelectuais e de burgueses negros, dois quais um número reduzido é rico, vemos uma cidade de trabalhadores sem emprego, de estudantes sem escolas suficiente, de enfermos sem atendimento, uma cidade cuja realidade não está nos cabarés da Lenox Avenue, mas nas filas de desempregados e nos mercados de domésticas da Burnside Avenue.
Vemos os que apreender das justificações do preconceito racial: o caráter pernicioso da mestiçagem, a inferioridade irremediável da raça negra. De forma exata: nada. O terceiro argumento, o mais pérfido, o que mais frequentemente é utilizado, é a necessidade de “proteção da mulher branca”. De acordo com alguns, o negro seria irremediavelmente atraído pela branca, cujo simples vislumbre bastaria para desencadear nele um furioso ímpeto sexual. É de se notar que esse traço seja específico nos negros dos Estados Unidos, pois não nunca foi observado nos países da América em que os negros formam, pelo menos, uma minoria muito forte, como em Cuba ou no Brasil, nem nas colônias da África do Sul, em que os brancos coabitam com eles em proporções consideráveis. Isto bastaria para demonstrar que se trata de um pretexto calunioso, que não dissimula a determinação de manter o negro em sua condição, fora da lei social, para poder subjuga-lo melhor.
O que há de curioso neste assunto, é que a violação da mulher branca seria uma questão de latitude nos EUA: em efeito, James Weldon Johnson, eminente poeta negro e reitor da Universidade de Fisk, fez notar que, apenas no ano de 1917, duzentos e trinta pessoas foram acusadas de estupro na cidade de Nova York, onde vivem duzentos e cinquenta mil negros. Nenhum destes se encontrava sob essa acusação.
Mas as estatísticas constituem a mais nítida contestação aos que tratam de explicar e justificar a infame instituição do linchamento mediante a patologia sexual do negro: entre 1914 e 1938, de 824 negros linchados, apenas 150 foram, sem prova alguma, aliás, acusados de estupro. Os outros haviam sido acusados de delitos como: assassinato, roubo, ter respondido um branco de forma insolente, por ter “testemunhado contra um branco” e, last but not least, “por ter manifestado preconceito racial”.
Como os linchadores não são juízes, mas sim justiceiros, executores, o acusado é culpado por definição. Ainda que o delito ou o crime imputado seja inverossímil, a corda e a fogueira logo sufocarão as alegações de inocência do infeliz negro. É preciso, pois, tirar da lista de crimes imputados aqueles casos em que esses crimes não foram cometidos de modo algum pelas vítimas de uma turba desenfreada.
Trinta estados proíbem o matrimônio ou as relações sexuais inter-raciais: a Flórida exige pela transgressão deste tabu uma pena de dez anos de trabalhos forçados ou multa de mil dólares; Maryland, pena de prisão igual, mais cem dólares de multa para o desafortunado eclesiástico que tenha abençoado esta união monstruosa; a pena do Mississipi também é de dez anos, e uma multa de quinhentos dólares. O mesmo sucede em Dakota do Norte, mas aí a virtude ofendida é avaliada em dois mil dólares e o concubinato é castigado com um ano de prisão e quinhentos dólares de multa. Em Nevada, se considera o matrimônio entre indivíduos da raça branca, etíope (sic), malaia, mongol ou indo-americana como uma “grande traição”, que rende dois anos de prisão. Etc... etc...
Outros estados, como Utah, Arizona, Califórnia, Nebraska e Carolina do Norte, não reconhecem a validade de matrimônios inter-raciais.
De nossa parte, nos negamos a injuriar a mulher norte-americana ao admitir que, para salvaguardar sua virtude, sejam necessárias a ação das leis e os furores do linchamento. Contra um ser tão abominável, no âmbito biológico e moral, como o negro, uma repulsão muito natural deveria bastar para brandir, frente os paraísos proibidos, a espada flamejante do pudor racial “caucasiano”.
E como o norte-americano não pertence – que eu saiba – a uma espécie zoológica distinta da de sua mulher, compartilha tão bem esta insuperável repugnância que a população de cor dos Estados Unidos – segundo o professor de antropologia Melville Herskovits, autoridade incontestável no tema – possui apenas oitenta por cento de mestiços, em vias de se estabilizarem em um grupo étnico relativamente homogêneo, suscetível de ser definido como uma raça americana morena (Brown American).
Tudo isso constitui um escândalo que, sinceramente, me aflige muito. Mas a própria existência desses milhões de mestiços prova de forma suficiente que nunca houve uma eventual “proteção à mulher negra” e em julho de 1919, no estado da Geórgia, um negro foi corretamente linchado após ocorrer-lhe, com um ímpeto bastante compreensível nesse obscuro primata, defender sua mulher contra o assédio de vários brancos bêbados. Eis aqui um desses brancos, característicos do sul: teve um anegra como cuidadora, frequentemente querida ou respeitada, que envelheceu em sua própria casa; mantém uma amante negra, com a qual tem alguns filhos, mas se indignaria por ter que comer no mesmo salão de um restaurante ou por viajar no mesmo compartimento que um homem de cor, ainda que este seja um célebre sábio, como o doutor Just ou o grande poeta Langston Hughes. Nada demonstra melhor, a meu ver, o caráter artificial da intoxicação racista, e que pouco resiste à reflexão a pretensa repugnância instintiva do americano branco pelo negro.
É preciso buscar, pois, em outra parte, as razões profundas de um sentimento que, em resumo, é irracional e contraditório.
Três quartos da população negra dos EUA vivem em distritos rurais do sul. Mais da metade deles se dedicam a trabalhar na terra, em sua maioria como arrendatários (sharecroppers). Estes arrendatários não possuem nada: nem a porção de terra que ocupam, nem a cabana em que habitam, nem as ferramentas e as sementes, que pertencem ao latifundiário branco. Enquanto espera a colheita, para viver, o arrendatário se vê obrigado a recorrer a empréstimos, que seu patrão lhe concede em condições de usura. Ao terminar a colheita, pode se considerar feliz se extrair um valor mínimo de seu extenuante trabalho. O mais frequente é que sua dívida tenha aumentado com o aluguel da cabana, das ferramentas, das sementes: para reduzi-la se verá forçado a oferecer seus serviços novamente na próxima estação. Recorre ao mesmo circuito, sem saída. Disso resulta um sistema de dependência definitiva em relação ao “landlord”, o que não é mais que uma nova escravização. E se se rebela contra a injustiça, se começa a se queixar, a organizar sindicatos para se defender, verá o líder, ou o que seja considerado como tal, balançando no galho mais alto de uma árvore, com o corpo crivado de balas, a menos que a fogueira o tenha convertido em um montão de cinzas, espalhado em uma clareira no bosque.
Mas o linchador mesmo é vítima do linchamento. Essas turbas de homens desenfreados perseguindo uma presa humana se compõem em grande parte de brancos pobres (poor whites), cujas condições de vida são apenas um pouco melhores que as dos negros. Através desta estreitíssima margem se exerce uma ilusão de superioridade sobre o negro e de uma identidade de interesses com as classes dirigentes. É por meio deste rodeio que se realiza a conciliação dos exploradores e dos explorados brancos. O preconceito racial é um instrumento de divisão das massas trabalhadoras do sul, brancas e negras, cujas reivindicações, se fossem comuns, fariam estremecer a “ordem estabelecida”. O linchamento funciona como uma útil ferramenta diversionista, e cumpre o papel de para-raios quanto a atmosfera está sobrecarregada pela eletricidade dos antagonismos sociais.
Nos distritos industriais, os sindicatos da American Federation of Labour estavam fechados para os trabalhadores negros. Pela força das coisas, estes, não apenas desvalorizavam os salários, posto que não estavam em condições de reclamar outros mais altos, mas que, frequentemente, se tornavam scabs ou fura-greves. (Só agora eles podem filiar-se ao Comitê Pró-Organização Industrial).
Mais um exemplo do ódio racial sabiamente utilizado para que sirva definitivamente como faca de dois gumes contra o trabalhador negro e, ao mesmo tempo, contra o trabalhador branco. É impossível ver no preconceito racial outra coisa que não seja a expressão ideológica dos antagonismos de classe, que por sua vez refletem as contradições do modo de produção.
É esta dupla imbricação na infraestrutura econômica o que dificulta, para um observador superficial, a análise de um fenômeno que, à primeira vista, parece apenas depender da psicologia. Se poderá argumentar que essa é a interpretação revolucionária dos fatos sobre-entendendo-se com isso não sei o quê de sectário ou dogmático; mas isto não impede que um escritor negro tão decididamente antimarxista como Walter White comprove como nós: “Os linchamentos tiveram sempre como objetivo, não a proteção da mulher branca, mas o aproveitamento... a hostilidade entre as raças, inteligentemente sustentada com a ajuda de histórias de violações e outros contos, serve para perpetuar as longas jornadas de trabalho, os baixos salários e as condições de vida deploráveis, tanto para os trabalhadores brancos como para os trabalhadores negros”.
4.087.872 de 6.531.939 eleitores negros são privados do direito ao voto e de participação plena na vida pública. É em estados como Carolina do Sul, Louisiana, Alabama, Georgia ou a Flórida, com uma porcentagem de eleitores que compreende, respectivamente, 42%, 36% e 21% de negros, onde se nota a eliminação política mais brutal. Se deseja votar, o negro é linchado pelos republicanos se ousa ser democrata, ou pelos democratas se deseja ser republicano. Despojado de todos os seus direitos, por quem é defendido o negro? Que mão se estende ao intocável? Qualquer que seja a opinião que se tenha sobre ou contra o comunismo, a legalidade ordena reconhecer que apenas este partido incluiu em seu programa e em sua ação prática a plena legalidade do negro: seu direito à libertação econômica, política e social. Homens como James Ford, neto de um linchado, trabalhador com formação universitária, antigo combatente da grande guerra, apresentado por seu partido na candidatura para vice presidente dos EUA, ou um jovem herói como Angelo Herndon, simbolizam o negro novo, esclarecido, consciente de sua jovem força, e que, na fraternidade do combate, ligou seu destino ao do trabalhador branco. Não é meu propósito abrir aqui um debate político. Mas, pessoalmente, saúdo a nobreza e a envergadura do trabalho empreendido por homens de boa vontade, irmãos inimigos ontem, hoje reconciliados sobre as ruínas dos preconceitos, por uma nova Abolição da Escravatura e pela reconstrução do mundo.
[1] Percy Irwin e Isaac Uima, trabalhadores negros acusados de roubar cinquenta centavos, foram condenados à morte e executados na prisão de Kilby, Alabama (The Negro Worker, maio de 1932).
[2] “Onde encontrar o nórdico cem por cento, idealmente digno de se converter em cidadão americano? Ainda que se vá buscá-lo no mais remoto dos fiordes da Noruega, se descobriria sem dúvida em suas veias sangue mongol, introduzido por alguns lapões. O estudo das reações sorológicas — relativas ao soro — do sangue, acaba por confirmar que todas as populações atuais são mestiças, cem vezes mestiças, e que nenhuma delas pertence por completo a um só grupo” – Lester e Millot: Les races humaines).
[3] No complexo quadro das castas coloniais da América hispânica os termos cuarterón e octavón se referem a gradações provenientes da mestiçagem no sentido de que, partindo de uma primeira relação inter-racial, os membros da geração subsequente sempre se relacionem com um branco/uma branca. Para entender melhor essas nomenclaturas, acessar o link: https://pueblosoriginarios.com/recursos/colecciones/castas_2/castas_2.html. (N.T.)
[4] Frase extraída da peça nazista Schlageter, do dramaturgo Hanns Johst, encenada em 1933, ano de sua ascensão ao poder, para comemorar seu aniversário e o triunfo político. (N.T.)
[5] Pozner, Vladimir (1905-1992): escritor e jornalista francês que viveu nos EUA e trabalhou em Hollywood. Ver seu livro: Esclaves et Dieux de Harlem, dans Etats Désunis, París, Denoël, 1938.
[6] Luschen, Felix von (1854-1924): arqueólogo e etnólogo alemão. Ver seu livro: Der Neger in den Vereiningten Staaten.
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