Por Tamiris Eduarda*
Frantz Fanon, o psiquiatra e filósofo político natural da Martinica. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2021-12-03/frantz-fanon-um-classico-para-entender-o-colonialismo.html
A desumanização e o silenciamento são processos que negam a plena humanidade de determinados grupos, reforçando a exclusão social e a perpetuação das desigualdades. A desumanização ocorre quando indivíduos ou grupos são tratados como menos dignos de direitos, respeito e empatia. Já o silenciamento diz respeito à invisibilização dessas mesmas vozes, restringindo sua capacidade de se expressar, de participar das decisões sociais e políticas, e de serem ouvidos em suas demandas. Este artigo examina os efeitos da desumanização e do silenciamento no contexto dos direitos humanos, destacando como essas práticas afetam populações marginalizadas e limitam a construção de uma sociedade mais justa.
1. O Conceito de Desumanização: Negação da Dignidade
A desumanização é o processo pelo qual um grupo é tratado como "menos humano" ou indigno de direitos fundamentais. De acordo com Paulo Freire (1970), a desumanização é um fenômeno inerente às relações de opressão, onde certos grupos se posicionam como "sujeitos" da história, enquanto outros são relegados à condição de "objetos". Nesse contexto, a desumanização não é apenas uma negação da dignidade humana, mas também uma ferramenta de controle social.
"Enquanto um ser humano não pode perder sua humanidade, a desumanização pode ocorrer como uma realidade histórica concreta, que distorce a realidade e priva os oprimidos de seu ser social" (Freire, 1970, p. 68).
Esses processos podem ser vistos em várias formas de discriminação, como o racismo, a xenofobia, o sexismo e a homofobia, onde determinados grupos são vistos como inferiores ou perigosos, justificando a marginalização e a exclusão desses indivíduos da sociedade.
2. Silenciamento: A Exclusão das Vozes Marginalizadas
O silenciamento está profundamente interligado à desumanização, sendo uma forma de excluir os indivíduos marginalizados da esfera pública. Gayatri Spivak (1988) utiliza o conceito de subalternidade para se referir àqueles que, por conta de sua posição de inferioridade social e econômica, não têm a capacidade de articular suas demandas ou de ter suas vozes ouvidas pelos poderes hegemônicos.
"O subalterno, em última instância, não pode falar. Quando fala, sua fala não é ouvida, e sua subjetividade é negada pelas estruturas de poder que o silenciam" (Spivak, 1988, p. 25).
O silenciamento também ocorre quando as narrativas e histórias das pessoas marginalizadas são distorcidas ou ignoradas. Em contextos de opressão racial, por exemplo, as vozes de comunidades negras são frequentemente excluídas das decisões políticas e sociais, reforçando sua desumanização. Isso se manifesta na falta de representação nos espaços de poder e na invisibilidade de suas lutas.
3. Os Efeitos Psicossociais da Desumanização e do Silenciamento
A desumanização e o silenciamento têm efeitos devastadores sobre a saúde mental e o bem-estar social dos grupos marginalizados. Segundo Fanon (1961), a desumanização colonial produziu uma internalização da inferioridade nos povos colonizados, levando-os a questionar sua própria humanidade. Esse processo de alienação é doloroso, pois gera sentimentos de inadequação e de isolamento, bem como a reprodução do próprio discurso opressor.
"A desumanização não apenas degrada o oprimido, mas também faz com que o opressor perca sua própria humanidade. A colonização, em última análise, cria uma sociedade onde o reconhecimento mútuo da humanidade é negado" (Fanon, 1961, p. 35).
O silenciamento, por sua vez, impede que indivíduos marginalizados participem da criação de novas narrativas sociais. A falta de espaço para a expressão de suas experiências e histórias reforça a marginalização, mantendo-os presos a condições de vulnerabilidade. Isso impacta diretamente a autoestima e a identidade desses indivíduos, criando barreiras para o empoderamento e para a luta por direitos.
4. Desumanização e Silenciamento nas Estruturas de Poder
As estruturas de poder, seja no nível institucional, cultural ou econômico, perpetuam e reforçam a desumanização e o silenciamento de determinados grupos. De acordo com Foucault (1975), o poder não se manifesta apenas em formas diretas de coerção, mas também na capacidade de regular o que pode ser dito, quem pode falar e quais discursos são legitimados. O silenciamento é, portanto, uma forma de poder que atua de maneira invisível, mas eficaz.
"O poder não é algo que se possui, mas algo que circula e que se manifesta nas relações sociais. O silenciamento é uma das formas mais sutis e poderosas de dominação, pois impede a expressão da subjetividade e da resistência" (Foucault, 1975, p. 94).
Nas relações raciais, o silenciamento de comunidades negras e indígenas reflete a perpetuação de uma hegemonia branca e eurocêntrica. A falta de representação dessas vozes nos espaços midiáticos, políticos e acadêmicos reforça a exclusão, mantendo essas populações em uma condição de subalternidade.
5. Resistência e Luta Contra o Silenciamento
Apesar das práticas de desumanização e silenciamento, há uma longa história de resistência por parte dos grupos marginalizados. Movimentos sociais, como o feminismo negro, o movimento LGBTQIAPN+ e o movimento indígena, têm lutado para reconquistar suas vozes e desafiar as estruturas opressivas que tentam silenciá-los.
Bell Hooks (1989) destaca que a resistência ao silenciamento começa com a construção de novas narrativas e a criação de espaços de fala onde as experiências de marginalização possam ser compartilhadas e reconhecidas. Segundo Hooks, o ato de falar em espaços de opressão é um ato radical de afirmação da própria humanidade.
"Falar quando nos é dito para permanecer em silêncio é um ato de resistência. É através da fala que recuperamos nossa agência e nos tornamos sujeitos da nossa própria história" (Hooks, 1989, p. 27).
Conclusão
A desumanização e o silenciamento são processos que negam a dignidade e a humanidade de determinados grupos sociais, reforçando a exclusão e perpetuando as desigualdades estruturais. Esses processos não apenas privam os indivíduos marginalizados de seus direitos fundamentais, mas também afetam sua saúde mental, autoestima e identidade. No entanto, a resistência a essas práticas tem sido uma constante nas lutas sociais, com movimentos que buscam reconquistar o espaço de fala e afirmar a plena humanidade dos oprimidos. A construção de uma sociedade mais justa passa pelo reconhecimento da importância de ouvir e amplificar as vozes silenciadas.
*Tamiris Eduarda é estudante de Psicologia, terapeuta com formação na abordagem ABA (Análise do Comportamento Aplicada), educadora social e escritora e editora da Clio Operária. Especialista em saúde mental da população negra e periférica, dedica-se a promover acolhimento, inclusão e reflexões sobre interseccionalidade e o impacto das vulnerabilidades sociais. Seu trabalho busca construir espaços de conscientização e equidade, com uma abordagem sensível, ética e transformadora.
Referências
Butler, J. (2009). Frames of War: When Is Life Grievable? London: Verso.
Fanon, F. (1961). Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Foucault, M. (1975). Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. Petrópolis: Vozes.
Freire, P. (1970). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Hooks, B. (1989). Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black. Boston: South End Press.
Spivak, G. C. (1988). Can the Subaltern Speak? In C. Nelson & L. Grossberg (Eds.), Marxism and the Interpretation of Culture. Urbana: University of Illinois Press.
Comments