Por Rafael Torres*
“Sou realmente livre quando o outro também é livre e é por mim reconhecido como livre”.
Hegel
Na imagem: Domenico Losurdo, marxista italiano e autor de "A Luta de Classes" obra que inspirou a elaboração desse artigo. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2018/06/29/domenico-losurdo-a-sociedade-civil-nao-e-necessariamente-o-lugar-da-emancipacao/
Com a transmutação do capitalismo industrial ao capitalismo financeiro, o sentido da luta de classes foi esvaziado[1]. Não reconhecemos com clareza mais o entrave histórico entre proletariado e burguesia, e o movimento dialético inerente a todas as sociedades. Teria esmorecido a luta de classes, então?
Classes é escrito no plural porque não remete apenas a contenda moderna, mas todo o conjunto de contrários, representados por subalternizados e opressores históricos, vítimas do capitalismo em suas diversas fases, ou do sistema feudal, anterior ao modo de produção atual. Já no desenvolver da contemporaneidade do sistema de acumulação o que nos é negado é a existência enquanto sujeito, o que Losurdo chama de juízo negativo infinito, que não nega uma singularidade, mas nega o gênero humano ao trabalhador (LOSURDO, 2015), por isso nega o significado de “trabalhador” ao trabalhador. O objetivo da classe trabalhadora não é a emancipação apenas dos grilhões econômicos, mas a emancipação universalizada, na esfera social, econômica, política e jurídica, portanto, emancipação histórica.
“Sem a emancipação econômica e social, o proletariado está submetido à ‘escravidão moderna’. É uma expressão que remete imediatamente à escravidão propriamente dita. E de novo impõe-se uma pergunta: é luta de classes a que tem como protagonistas os que estão submetidos à escravidão moderna [...]?” (LOSURDO, 2015, p. 26)
Desnudar o trabalhador, retirar dele a perspectiva de agente histórico e de classe revolucionária, atende aos interesses da elite econômica e politicamente dominante. É preciso que a classe trabalhadora, ao se olhar no espelho, não se enxergue ou veja uma imagem distorcida, resultando na falta de organização das massas, o que por sua vez conclui a inexperiência no combate político e na desconfiança das instituições que fazem parte da vida pública e do Estado. Todas as necessidades, que outrora deveriam ser atendidas pelas políticas públicas de redistribuição de renda e assistencialismo, se reformam e aparecem como antipolítica (SAAD FILHO e MORAIS, 2018).
Ao encarar aquele juízo negativo infinito, caro a Losurdo, nos deparamos com os ideólogos do neoliberalismo que herdaram do discurso dos liberais clássicos a mentirosa ideia do naturalismo nas relações humanas. É natural, para eles, que a competição exista e que o outro seja sempre apenas o outro, não igual a ele perante a história. Nesse sentido, a cobiça e egoísmo são expressões do espírito humano. Assim, justificam-se os diversos períodos da história humana onde uma classe subjugou outra; justifica-se assim o racismo; justifica-se a morte por inanição, o desemprego latente; justifica-se a colonização praticada pela Europa.
Classes está no plural também devido aos antagonismos diversos dentro de uma enorme disputa por hegemonia. A escravidão doméstica, representada pela submissão da mulher na família patriarcal, não é uma luta de classes? O sistema capitalista é a opressão de um povo sobre outro, na figura do imperialismo e colonialismo, mas também de uma classe sobre outra, no território nacional, e de um sexo sobre outro, no ambiente familiar.
Agora, retornemos a um clássico:
“A história de todas as sociedades até nossos dias é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma batalha ininterrupta, ora aberta, ora dissimulada, uma luta que terminava sempre com uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou com a destruição das duas classes em luta” (MARX e ENGELS, 2018, p.46)
A citação acima, retirada da magnânima obra dos pais do comunismo, coloca em ordem decrescente as classes antagônicas na história, e começa justamente entre homem livre e escravo, pois eram as classes em antagonismo durante o século XIX, bem verdade que passando por um momento de abolição das escravaturas nas colônias, ainda que para atender a classe burguesa emergente. A revolução desta última, saindo da caverna sombrosa da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes, apenas retirou os senhores feudais e a estrutura monárquica e tomou o poder político.
As condições históricas se reformulam dentro dessa sociedade burguesa vinda do entrave com o senhor feudal, portanto, se retornássemos à citação feita do Manifesto, veríamos algo diferente escrito hoje. Se a citação de classes tivesse continuado comportando até os dias atuais, a primeira, dada a ordem decrescente, seria empresário e empresário. Se a produção econômica e a estrutura social, derivada dela, alteram com as crises do capital, após a segunda metade do século passado entra em vigor o neoliberalismo. A ideia de fim de classes é inerente a esse modelo de exploração, mas no terreno físico, apenas renomeou quem participa do enfrentamento histórico, de modo que todos são empreendedores, por isso as classes seriam empresário e empresário na dinâmica dialética moderna. Essa é uma característica essencialmente individual da época burguesa, ela precisa e sempre revolucionará os instrumentos de produção e o conjunto das relações sociais, movida pela busca e conquista de novos mercados, e para isso vai estabelecer relações em todas as partes. Como um véu que cobre os olhos, e para cumprir com o processo de establishment, a criação de corpos dóceis, produtores, pouco ou nada questionadores foi orquestrada pela financeirização da vida.
Se restam dúvidas sobre a manutenção da luta de classes, vejamos o que nos diz Lênin sobre o papel do Estado na sociedade de classes:
“O Estado é o produto e a manifestação do caráter inconciliável das contradições de classe. O Estado surge onde, quando e na medida em que as contradições de classe não podem objetivamente ser conciliadas. E inversamente: a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis” (LÊNIN, 2017, P. 29).
Na sequência da mesma obra, Lênin debate sobre o Estado representar o órgão de conciliação de classes e elabora como essa leitura é a deturpação do marxismo. Segundo ele, o Estado surge da inconciliação de classes, não sendo, portanto, um juiz que apita arbitrariamente a favor de ambas as classes, mas sim um representante da dominação de uma classe sobre a outra. Isso significa que a forma que o Estado vai conduzir as instituições que dele fazem parte depende da correlação de forças definida pela luta de classes[2]. Na sociedade neoliberal, quando os interesses de classes se chocam de forma mais explícita, o Estado enquanto representante dos interesses da burguesia, tende a retirar os direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores. Logo, a prova concreta da existência da luta de classes é a existência do Estado.
Outro revolucionário também pode nos falar sobre lutas de classes e Estado. Fred Hampton, líder dos Panteras Negras, em seu celebérrimo discurso É Uma Luta de Classes, Porra! ao citar o caso de Dred Scott, um ex-escravo que – nas palavras do próprio Hampton – ainda era escravo, pois os negros, inclusive ele mesmo, eram escravos ainda, foi até a corte americana e ouviu do juiz Taney, em 1857, que “os sistemas legal e judicial que operam na América foram estabelecidos antes dele (Scott) chegar”, pois “funcionavam para manter o que eles tinham”. Hampton, usando a fala do juiz escravocrata em seu discurso, tinha a noção de que a luta de classes está viva, muito viva.
Ainda assim, existem hoje os que invocam o discurso sobre como a sociedade neoliberal promoveu condições de todos serem livres. Que liberdade é essa? Não existe liberdade concreta em ter que vender sua força de trabalho para um patrão que você nem conhece; seus dias não são livres quando você chega em casa pela noite e tem que decidir entre comer e dormir, pois, as duas necessidades fisiológicas estão no seu ápice, dado que passou o dia inteiro sem se alimentar e acordou cedo para trabalhar.
Devemos entender o conceito de classe pelo que ele é, de maneira mais simples: se eu deixar de trabalhar hoje, quanto tempo levaria até morrer por inanição? O seu, o meu, o nosso patrão sequer ele trabalha, nós o alimentamos. A coletividade da classe trabalhadora, que disseram estar morta, se prova na organização pelo fim da escala 6x1, que transcendeu o debate político entre o trabalhador que se reconhece como de direita e os mais progressistas, uniu a classe que vive dentro desse sistema e nesse momento histórico do trabalho. É preciso darmos um passo atrás, nos olharmos, observarmos quem está ao nosso lado no transporte público, no trabalho, no mercado, nos hospitais e na sociabilidade da vida. Quem está ao nosso lado é nosso semelhante, são aqueles que enfrentam o chicote do patrão da mesma forma que nós enfrentamos.
A esquerda, historicamente, é responsável por desfazer os devaneios orquestrados pela burguesia, como é a noção de que o trabalhador não pertence à sua classe. E aqui faço um apelo, aos moldes de um lembrete: se o capitalismo produziu o maquinário que o possibilita expandir, também criou o trabalhador que irá cobrar a exploração (MARX e ENGELS, 2018).
* Rafael é editor geral da Clio Operária, historiador, graduando em Serviço Social e educador popular.
[1] Tese cara a Byung-Chul Han em Psicopolítica: neoliberalismo e as novas formas de poder
[2] Antônio Carlos Mazzeo disserta essa ideia na introdução de Democracia e Luta de classes, edição da Boitempo de 2019
Referências bibliográficas
FILHO, Alfredo Saad e MORAIS, Lecio. Brasil, neoliberalismo versus democracia. 1ª edição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018.
LÊNIN, Vladímir Ilitch. Democracia e luta de classes. 1ª edição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.
LÊNIN, Vladímir Ilitch. O Estado e a Revolução. 1ª edição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 1ª edição. São Paulo: Editora Lafonte, 2018.
MANOEL, Jones e LANDI, Gabriel (org). Raça, classe e revolução: a luta pelo poder nos Estados Unidos. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
LOSURDO, Domenico. A luta de classes. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.
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