Por Vinicius Souza*
O campo político, social e economicamente, reconhecido enquanto esquerda é constante alvo de disputa em termos de projeto e direcionamento. Por óbvio, momentos importantes da vida pública revelam o tom desta disputa, e não foi diferente com as eleições municipais de 2024. A primeira eleição direta após a derrota de Bolsonaro nas urnas em 2022, derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva por menos de 2% de votos, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), um nordestino que migrou com a família para o sudeste e que acabou por se tornar operário, líder sindical, fundador do PT e, por fim, Presidente da República por três vezes, feito único na história política brasileira. Por outro lado, em 2022, Jair Messias Bolsonaro, um capitão reformado do exército que exerceu por anos mandato como deputado sem relevância real direta, mas que se constituiu pouco a pouco como o símbolo de um movimento de massas que renovou o facismo no país. Entre os dois: um Presidente conhecido por retirar o Brasil do mapa da fome[1] e o outro por matar mais de 700 mil brasileiro na pandemia de covid 19[2].
As eleições municipais, conhecidas por, além de tudo, desempenharem traço crível na descoberta de qual será o contexto da próxima eleição nacional tomou, naturalmente, o palco e espetáculo do público nacional. Do ponto de vista prático, a tarefa estava estabelecida: vencer o pleito no maior número possível de cidades e garantir as grandes capitais, com especial destaque para três cidades nas quais a esquerda chamou atenção como Porto Alegre, Natal e São Paulo, no entanto, sendo derrotada.
Na capital paulistana, Guilherme Boulos (PSOL), liderou em quase todas as pesquisas de intenção de voto, das maiores às menores instituições. Neste momento, a esquerda paulistana e do Brasil olhou para o cima e não viu raios em um céu azul, mas viu a luz do sol se abrir em meio a um céu nublado. Não por acaso, Boulos havia se consolidado como uma nova liderança na esquerda representando São Paulo, a campanha eleitoral em 2020 na qual o psolista chegou ao 2º turno contra Bruno Covas (PSDB), demonstrou a força que a esquerda poderia exercer depois de uma expressiva derrota de Fernando Haddad (PT) para João Dória (PSDB) em 2016.
Em Porto Alegre, não foi diferente. Maria do Rosário (PT) despontava contra Sebastião Melo (MDB), representando a possibilidade de uma ofensiva histórica na cidade, sobretudo após o papel de negligência de Melo que o tornou cúmplice das enchentes que resultaram em uma das maiores tragédias climáticas da história do Brasil.
Em Natal, Natália Bonavides (PT) realizou uma das campanhas da esquerda que mais chamou atenção a nível nacional, pleiteando o município contra Paulinho Freire (União Brasil). Apesar da derrota, Bonavides, conhecida como um quadro nacional que não abre mão da profundidade das pautas da esquerda para caber na institucionalidade liberal brasileira, realizou uma grandiosa demonstração de força.
Apesar das demonstrações de brilhantismo e atuação política, derrotas são impossíveis de serem reparadas, apesar dos ganhos do percurso. O PSD, de Gilberto Kassab, Secretário de Governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo, por outro lado, conquistou 891 municípios, contra 251 do PT. Não obstante, as Prefeituras são fundamentais para as eleições nacionais, tanto para as cadeiras de presidente e governador quanto de senadores e deputados federais. Foi uma derrota para a esquerda, uma derrota agressiva. Venceu o fisiologismo do centrão que ocupa fileiras ombro a ombro com a extrema direita, portanto, o facismo institucionalizado nos cargos públicos, venceu.
A balança que mede o peso da derrota
As análises que buscam medir a causa e o peso da derrota, naturalmente apareceram ininterruptamente buscando justificar o porquê o povo das cidades negam à esquerda a entrada nos governo municipais. Contudo, o caminho a ser seguido se demonstrou diverso, as análises vendo sendo compostas de críticas às campanhas ao programa de austeridade fiscal encabeçado pelo Ministério da Fazenda. O que chamou atenção, de maneira geral, foi a preponderância para o que vem sendo chamado de identitarismo na esquerda. Por identitarismo, aqui se entende o espaço central que pautas ligadas ao racismo, genocídio da juventude negra, equidade de gênero e direitos da população LGBQIAPN+ tem ganhado no debate público, sobretudo no campo político das esquerdas.
No dia 18 de outubro de 2024, Jessé Souza[3], sociólogo crítico público das chamadas pautas identitárias, teve entrevista publicada no jornal O Globo, no qual se destaca a frase “Não basta essa esquerda ‘legal’ que discute gênero e raça”. A entrevista segue apontando que o erro da esquerda é afastar os mais pobres através das pautas identitárias, destacando que o eleitor branco trabalhador do Sul e Sudeste é ressentido racialmente com a esquerda devido ao debate racial. A entrevista segue com o autor afirmando que um dos erros da campanha de Guilherme Boulos foi justamente as pautas identitárias.
Em linhas gerais, isso é basicamente afirmar que os brancos pobres são racistas e, portanto, pautar raça é perder eleição. Então, o que deve ser feito é simplesmente não construir proposta de governo e política pública de superação do racismo? E ainda cita como exemplo a forma como Vargas lidou com a questão racial, financiando a vinda de brancos para embranquecer a população brasileira em um projeto determinado a extinguir a população negra através da miscigenação? Seria fomentando através da capacidade institucional do Estado a falácia da democracia racial para esfriar as contradições fundamentais da sociedade brasileira?
O verdadeiro ressentimento branco em relação a onda negra[4] parece expresso nessa entrevista. Ao contrário do que afirma a arrogância branca do intelectual entrevistado, a pauta racial e de gênero fez radicalizar a esquerda nas últimas décadas e fomentar politicamente pautas que, historicamente, a percepção ortodoxa da luta de classes se recusava a enxergar - trabalho doméstico, questão carcerária, violência policial, genocídio, limites da democracia burguesa, jornada dupla e tripla de trabalho, etc.
Como afirma Sueli Carneiro, a tarefa histórica do movimento negro é levar a esquerda para a sua própria esquerda. Florestan Fernandes (2017) aponta que o termômetro de uma democracia, seja ela socialista ou burguesa, é a questão racial e o nível de desumanização que sofre a população negra. A contradição fundante da luta de classes no Brasil é a escravidão, como afirma Clóvis Moura (2014). Essa entrevista demonstra o incômodo branco com um mundo que está mudando sem possibilidade de voltar a ser o que era. É, no fim, uma defesa branca da ordem como ela é.
Quando a esquerda é ideologicamente branca
Ao estudar o conceito de loucura em Foucault, Sueli Carneiro (2005), aponta que, da mesmo forma que para se definir quem é o sujeito normal é necessário colocá-lo em oposição ao sujeito louco, pois a normalidade só existe em oposição a loucura, o negro (natureza) existe quando colocado em oposição ao branco (razão), sendo a racionalidade moderna fundada sobre bases dominadores da natureza pela razão (Matos, 1993), essa sociedade que existe para o branco, precisa se reafirmar definindo os sujeitos que são a ausência dela mesmo. O negro, portanto, é a oposição que a sociedade branca se vale para se reafirmar.
Essa, reafirmação, por sua vez, se mostra no genocídio, encarceramento em massa, exploração do trabalho, formação das favelas, ausência de direitos básicos como moradia e segurança alimentar e nutricional, assim como no plano epistemológico, na produção de saberes e instrumentos de interpretação e organização da sociedade. O eurocentrismo, elemento fundamental do funcionamento do racismo, coloca no campo epistemológico, a produção de saberes, conhecimento, ciência e expressões culturais dos negros, em oposição as formas brancas de existir. Desta forma, o que é branco não é só o que é belo, inteligente, sagrado e universal, mas o que é formulado e produzido pelos brancos é que possui validade histórica. No caso do negro, como poderia um corpo vazio em humanidade produzir conhecimento e cultura?
O rebaixamento das experiências e contribuições históricas à população negra, mesmo no campo da luta política, é uma estratégia de dominação, é o assassínio simbólico. E esta é a determinação final da crítica ao suposto identitarismo à esquerda. Como poderia ser a pauta racial a destruir a capacidade é força da esquerda, quando a luta dos movimentos negros tem produzido a crítica mais qualificada e a experiências políticas mais revolucionárias à sociedade brasileira? Em um país no qual 88,7% dos mortos pela polícia são negros[5], como ser pode ser a pauta racial que afasta a esquerda do povo? Seria possível que no terceiro país que mais encarcera no mundo, onde 70% dos presos são negros[6], ser a questão racial que faz a esquerda perder uma eleição? Como no país que mais da metade da população é negra, sendo que 46,1% dos trabalhadores informais são negros[7], seria a pauta racial a culpada dos fracassos políticos das esquerdas?
Os dados poderiam não ter fim, não cabendo somente neste texto. O ponto que se revela é que a questão racial não é o que afasta as esquerdas do povo, mas se determinada esquerda entende dessa forma, significa que ela jamais esteve próxima do povo brasileiro e das suas demandas históricas. Essa esquerda é, ideologicamente, branca e, portanto, a sua ação política é a negação do sujeito negro e da sua experiência social e histórica. Neste caso, se trata de um campo político em negação à própria história brasileira, em termos dialéticos.
Em defesa da história
A contradição fundante da luta de classes no Brasil, é o modo de produção escravista, nunca qual o antagonismo central era o sujeito escravizado em oposição senhor de escravos dono do latifúndio. A síntese desse processo, do ponto de vista da ordem era a coisificação do negro e a refirmação do escravismo, mas do ponto de vista da resistência (antíntese), da luta coletiva do negro pela reafirmação da sua própria humanidade, é a produção de alternativas de sociedade. Ao longo da história do Brasil, a negação do escravismo produziu sociedade revolucionárias erguidas pelos negros e que ficaram conhecidas como quilombos.
Na “Semana de Descolonização e Contemporaneidade Negra" realizada em 1987, Joel Rufino[8] diz que “[...] a gente devia pensar o socialismo como uma coisa arraigada na experiência do povo brasileiro e isso é uma coisa que, de modo geral, os nossos socialistas não tem feito [...] nós deveríamos considerar o socialismo como uma experiência brasileira, então o antecedente do socialismo não é a Comuna de Paris, é Palmares”. Deixando de lado, as potenciais questões teóricas a respeito desta fala, a provocação política é certeira. A experiência histórica do povo negro, é a experiência histórica revolucionária.
O historiador e sociólogo piauiense, Clóvis Moura[9], revolucionou a história social do negro no Brasil, a partir dos seus estudos sobre a resistência ao modo de produção escravista, constatando que a história do escravismo é também a história da luta constante do negro em defesa da sua humanidade. Onde há opressão, há resistência. Em termos marxianos, onde não há luta não há história. E a perspectiva ideologicamente branca sobre os identitários, é uma negação da história.
Ao longo da história do Brasil, desde o início do escravismo e do tráfico internacional de africanos escravizados, os negros desenvolveram múltiplas estratégias de resistência que ao longo do tempo foram se desenvolvendo frente as transformações relativas ao Brasil Colônia (1500 - 1822) e Brasil Império (1822 - 1889). É possível observar neste processo a participação da população negra em diversas revoltas que ocorreram no interior da sociedade, e desenvolvendo iniciativas próprias de contraponto ao modo de produção escravista.
Este movimento constante de luta pela própria humanidade, Clóvis Moura chamou de quilombismo - a ação constante de luta pela reafirmação e defesa radical da sua humanidade. No Brasil, a maior expressão deste processo de luta foram os quilombos que, mais do que um simples refúgio, foram sociedades alternativas ao escravismo que o contrapunham em termos de projeto de poder.
A República de Palmares existiu por mais de um século, constituindo um território com propriedade coletiva da terra e distribuição da produção, mecanismos diretos e descentralizados de participação política, valorização da diversidade etnico-cultural e baseada na oposição a coisificação do negro e o latifúndio enquanto forma predominante de propriedade. Palmares é a expressão organizada da reafirmação dos negros enquanto seres humanos e expressão máxima da luta por este objetivo. Trata-se da experiência revolucionária mais avançada do Brasil, baseada em epistemologias dos diferentes povos que comporão a sua estrutura e que culminaram em uma experiência política própria.
A experiência histórica de Palmares foi traduzida em forma de filosofia política, projeto político-econômico e cultural para o Brasil na obra de Abdias Nascimento à luz da teoria do quilombismo[10].
As formulações e lutas do povo brasileiro mais à esquerda são, historicamente, aquelas travadas sob a ótica da superação do racismo e protagonizada pelos movimentos negros e pela população negra brasileira. A quilombagem, enquanto elemento conceitual e prática política, segue viva na luta constante no interior da sociedade brasileira nos movimentos de moradia, na luta pela reforma agrária, nos movimentos pelo pelo fim das prisões e contra o genocídio da juventude negra, na defesa dos direitos sociais, na disputa pelo orçamento público e na superação do neoliberalismo.
Não existe proposição política mais identitária do que o ser ideologicamente branco, aquele militante em defesa do contrato racial[11] que busca a manutenção da hegemonia branca através da brancura denunciada por Frantz Fanon. Essa é a ideologia identitária reacionária, uma forma de reafirmação da ordem vigente.
__________________________________________________________________________________
*Vinicius Souza é historiador, especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais. Editor e articulista da Clio Operária, estuda e escreve sobre os temas da filosofia política e história social brasileira. Tradutor e curador do livro “Há uma Revolução Mundial em andamento: discursos de Malcolm X” (LavraPalavra Editorial).
[1] Segundo relatório global da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 2014 o Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome, reconhecidamente pelas políticas sociais de assistência social, transferência de renda, acesso à educação e promoção do emprego formal no período correspondente aos dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 - 2011).
[2] Durante o governo de Jair Messias Bolsonaro (2019 - 2022) o Brasil se tornou o 2ª país com mais mortes por covid-19. No total, mais de 500 mil pessoas morreram devido à negligência e à política negacionista, resultado o fascismo.
[3] Jessé José Freire de Souza é advogado, sociólogo e professor universitário, conhecida por livros como “A elite do atraso” (Leya) e “O pobre de direita” (Civilização Brasileira).
[4] AZEVEDO, C. M. M. de. Onda Negra Medo Branco. O negro no imaginário das elites do século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
[5] Pele alvo [livro eletrônico]: mortes que revelam um padrão / Silvia Ramos...[et al.]. ilustração Albarte. – Rio de Janeiro : CESeC, 2024.
[6] ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. ISSN 1983-7364.
[8] Joel Rufino dos Santos foi um historiador, professor e romancista brasileiro, intelectual engajado no movimento negro brasileiro se tornou umas das maiores referências nacionais nos estudos sobre cultura africana e afro-brasileira.
[9] Clóvis Steiger de Assis Moura, mais conhecido como Clóvis Moura, foi um sociólogo, historiador e escritor brasileiro. Através dos seus estudos sobre a história social do negro e a resistência à escravidão, Moura se tornou um dos maiores intelectuais do Século XX reformulando epistemologicamente as formas de interpretar a formação social e histórica do Brasil.
[10] NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.
[11] MILLS, Charles Wade. O contrato racial. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
Referências
FARIAS, M. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2019.
MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. 2. ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois e Anita Garibaldi, 2014.
MOURA, C. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 5. ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois e Anita Garibaldi, 2014.
MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. Editora Ática: São Paulo, 1988.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
CARNEIRO, A. S., FISCHMANN, R. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
MATOS, O. A escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993.
Comentários