Por: Rafael Torres e Vinicius Souza*
“Ninguém come PIB, come alimentos.”
Maria Conceição Tavares
Na imagem: Arthur Lira, presidente da câmara dos deputados
Uma introdução
O Brasil passa por um processo de fortalecimento e acirramento das políticas neoliberais, através de programas de austeridade fiscal, controle de gastos públicos, cortes em verbas das mais diversas áreas e tudo o que for preciso e necessário para cumprir com a meta do governo.
É importante que tenhamos em mente exatamente quem são os agentes desse caos que está ceifando vidas e, sem exagero algum, encurtando nossa passagem pela Terra. O neoliberalismo, antes de tudo, é uma teoria de práticas políticas-econômicas que dita o bem-estar humano através de liberdades comerciais e capacidades empresariais/empreendedoras individuais, isso num contexto de solidez da propriedade privada, livre comércio e livre concorrência. O Estado, diferentemente do que é defendido da boca para fora por esses mesmos liberais, possui um papel fundamental no que tange a criação de bases para o funcionamento dessa concorrência através da institucionalidade (HARVEY, 2005). De início, notamos que a primeira contradição no discurso está posta: o Estado tem funções intrínsecas a ele e, sem o seu cumprimento, o mercado não pode agir livremente. É importante também citar que a polícia, as guardas municipais, órgãos jurídicos e legais, ou seja, os meios coercitivos do Estado, são braços que funcionam apenas para garantir a manutenção da propriedade privada. David Harvey, citado acima e importante estudioso dos impactos do neoliberalismo, elabora em sua obra O neoliberalismo: história e implicações como ocorreu a adesão a esse conjunto de práticas entre as décadas de 70 e 80 do século passado, tendo início com Paul Volcker assumindo o controle do Banco Central dos Estados Unidos (FED), em 1979, meses após Margaret Tatcher ser eleita primeira-ministra britânica com o dever de controlar os sindicatos e contornar a estagnação inflacionária do país. No ano seguinte, na mesma direção, Ronald Reagan foi eleito presidente dos Estados Unidos.
Essa adesão, nesse momento específico da história, pode ser creditada a inúmeros fatores contextuais, mas vale citar que o neoliberalismo surge também como uma resposta do capitalismo ao programa socialista da União Soviética (URSS), ainda que ela não estivesse mais sob a liderança de nenhum dos principais idealizadores da revolução: Lênin havia nos deixado em 1924; Stalin em 1953; e Trotsky, morto em seu exílio em 1940. Mesmo que esses revolucionários, outrora tão importantes para a revolução socialista, não estivessem mais à frente da URSS, o capital ainda estava ameaçado pela simples existência do socialismo em larga e crescente escala. Por exemplo, no início da década de 60 havia chegado ao clímax a Crise dos Mísseis. Para alcançar esse grau de adequação de governos ao redor do mundo, os ideólogos do neoliberalismo logo se espalharam pelas universidades, meios de comunicação, administrações (públicas e privadas) e obviamente nos setores mais estratégicos do Estado. Aqui também se faz necessária a menção sobre a relação neoliberalismo-tecnologia, que se alimentam e fornecem reciprocamente nessa espécie de fotossíntese macabra o que precisam para sobreviver, afinal, foi justamente nesse período da história que a tecnologia ganhou um salto de qualidade imenso, possibilitando o que hoje temos como normal: a comunicação com qualquer pessoa em qualquer parte do mundo de forma instantânea. Um contrato precisa ser assinado no mesmo momento em que foi produzido, essa é a lógica neoliberal.
Neoliberalismo e ideologia
Dessa segunda metade do século XX até agora, o firmamento da sociedade da livre concorrência se deu também pela construção ideológica. Esse termo possui diversas análises, mas vamos nos debruçar sobre a elaborada por Gramsci em seus Cadernos do Cárcere. Leandro Konder, marxista brasileiro, realizou uma extensa pesquisa sobre o conceito de ideologia para diversos pensadores, em diversos momentos da história e em diferentes localidades, tudo isso na grande obra A questão da ideologia, e demonstra como Gramsci, municiado de todo o espírito marxiano, coloca a ideologia em seu devido lugar: “Para Marx, as ‘ideologias’ não são meras ilusões e aparências; são uma realidade objetiva e atuante. Só não são a mola da história”. Nem poderia sê-lo, pois é necessário a práxis, a atuação humana na história, para alterá-la. E foi assim que o neoliberalismo se consolidou. Konder, citando Raymond Williams, expõe o processo: “O historiador britânico, convencido de que o conceito de ideologia se ressente de certa abstratividade, sugere que ele seja substituído pelo conceito – elaborado por Gramsci – de hegemonia, que em princípio seria mais adequado para uma compreensão da ligação concreta da consciência prática dos homens com as atividades socioeconômicas e com o exercício do poder político na história” (KONDER, 2020, p. 206). Com essa alteração no imaginário popular, toda uma vida foi ressignificada para obtenção de lucro, e com isso o conceito de felicidade também foi alterado. Agora, felicidade não é nada mais que a mercadoria que pode ser conquistada e a marca da sola que pode ser deixada na cabeça de seu concorrente (CASARA, 2021), e aqui aparece a característica mais inerente ao neoliberalismo que é a eliminação de tudo que possa levar ao conjunto e à vida social, sendo então a única postura aceitável a elevação do individualismo ao máximo grau possível.
Todos os direitos da classe trabalhadora, conquistados sempre com muita luta, são barreiras para os interesses egoístas dos livres concorrentes desse mercado, e por isso o neoliberalismo não tem o menor problema em se apoiar no nazifascismo, por exemplo. O neoliberalismo é volátil, mas sempre contra os excluídos da sociedade capitalista: “Como ocorre com a racionalidade neoliberal, atualmente hegemônica, a racionalidade nazista levava seres humanos a perceberem outros seres humanos não só como coisas ou ferramentas para alcançar os objetivos dos detentores do poder, mas também como ameaças” (CASARA, 2021, p. 31).
Uma crítica que alguns marxistas fazem à obra marxiana é que Marx tentou prever a ruptura da sociedade do capital e errou, feio inclusive. O filósofo alemão demonstrou que a relação entre as forças produtivas do capitalismo e seus dominantes entram em contradição, ou seja, se chocam, já que os trabalhadores, que vendem sua força de trabalho, se reproduzem continuamente, e essa contradição geraria a crise que demandaria mudanças sociais, rompendo com o capitalismo. Mas o capitalismo industrial se reformulou em neoliberalismo, que liberta o trabalhador da noção de exploração sofrida e o coloca na posição de empresário e empreendedor. Byung-Chul Han (2023) traz uma noção magnífica desse momento em que o papel do socialismo em libertar o trabalhador dessa exploração deixa de existir, e o neoliberalismo assume essa função: se o trabalhador é empresário de si mesmo, dono do seu próprio tempo e, portanto, servo de si, como ele mesmo poderia se explorar? Se não há sensação de exploração, então não é exploração! “O sistema neoliberal não é mais um sistema de classes em sentido estrito. Ele não se constitui por estratos antagônicos da sociedade. É aí que reside a estabilidade do sistema” (Han. 2023, p. 15). Individualmente, cada ser que falha no sistema neoliberal não consegue culpar ou questionar o modo produtivo por seu fracasso (seja a não obtenção de emprego até a miséria material), porque internamente somos condicionados a crer que se não alcançamos é porque não houve esforço suficiente, essa é a falácia da meritocracia que apenas dá sustentação e firmeza para a manutenção liberal.
Fica claro que o egoísmo é uma virtude dos tempos neoliberais. Nos é vendida a ideia de que o ser humano é indubitavelmente individualista e sempre o foi, mas na verdade, ao olharmos a construção e formas organizacionais primitivas, vemos as “sociedades comunais” onde a terra não pertencia a um único dono, nem a comida ou qualquer fruto, material ou imaterial, surgido dessa comunidade. Engels, em sua obra A origem da família, propriedade privada e Estado, demonstrou muito bem a forma como a propriedade privada e a noção de concentração de riqueza passam a existir com o surgimento do Estado. Somos seres sociáveis, nossa construção é com o outro.
Neoliberalismo, Estado e indivíduo
Como demonstrado acima, no neoliberalismo o sujeito se torna empresário de si, explorador de seu tempo e detentor da possibilidade de fracasso ou vitória. Portanto, qualquer programa assistencialista, de redistribuição de renda ou de redução da desigualdade é visto como trapaça nesse jogo. Em parte, isso explica o que acontece com o Bolsa Família e a relação dos jovens com jogos de apostas online. No fim de setembro, a Folha de S. Paulo divulgou que beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões de reais em jogos de apostas esportivas online só no mês de agosto. O horizonte é de que não há nenhuma expectativa de alteração da estratificação social posta pela sociedade do capital, e por mais que o valor do programa possa colocar algo na mesa, a aposta pode colocar 3x mais. É claro que há também o esvaziamento do significado sociopolítico do Bolsa Família como programa assistencial mais incisivo da história do Brasil. A burocracia na figura do Estado também é um projeto indissociável do neoliberalismo, ela dificulta o acesso aos mesmos programas assistenciais, empurrando essa parte mais vulnerável da população para as bets, ou qualquer outra opção que apresente uma mínima possibilidade de ganho em seu horizonte.
A face mostrada pelo Estado para sancionar o neoliberalismo é a antipolítica. A política passou primeiro por um processo de demonização e negativação, levando à despolitização da população, sobretudo as parcelas a quem a política mais interessa, para depois sublinhar o discurso de que “política não se conversa”. O fenômeno Pablo Marçal pode ser explicado nesse discurso, por mais que seja clara a ligação do coach com a extrema-direita e o fascismo, ele se coloca como alguém antissistêmico, avesso à política.
O resultado dessa união entre a invocação do sentimento de empresário de si + antipolítica resulta inevitavelmente na impossibilidade de ganho de consciência de classe. Recapitulando, para Byung-Chul Han foi o neoliberalismo que se apossou da noção de fim das classes sociais, ele assumiu o papel de colocar o véu da ilusão de não pertencimento à classe trabalhadora. Com o deslocamento do indivíduo, apenas ao nível psicológico, da noção de pertencimento a uma classe subalternizada, o neoliberalismo pode apresentar também sua face através do poder, onde aqui o termo não se prende apenas ao poder policial e forças militares, mas ao controle em todas as suas instâncias. A noção de poder com o neoliberalismo se diferencia daquela com que Foucault trabalhou. Agora ele é permissivo, sedutor, nos manda a mensagem de sermos livres, e se nos sentimos dessa forma, significa que esse poder é bem mais eficiente do que jamais foi: ele sequer precisa fazer esforço para desempenhar controle. A livre escolha, que sempre foi um dos objetivos centrais da luta contra o capitalismo, passa agora a ser apenas uma escolha do que há de melhor a ser ofertado pelo mercado. Com isso, não há resistência da classe trabalhadora em direção vertical.
O sujeito neoliberal é o sujeito do eterno vir a ser: ele pode se tornar próspero, um dono de empresa, ter inúmeros imóveis e infinitos zeros em sua conta bancária. Nunca o será, mas pode.
Não poderia deixar de citar também o papel da estética neoliberal na suavização dos corpos, onde para criar o melhor de si, é preciso também evoluir fisicamente através das academias e centros de cirurgias plásticas. A exploração de si é apaixonante, o sujeito precisa se apaixonar, no sentido mais narcisista do termo, por si mesmo porque só assim vai buscar sua melhor versão, e isso se estende ao escritório, ao concorrente, aos negócios. Quando pisar na cabeça do seu inimigo, ele precisa ver um sapato Louis Vuitton, e não um comprado no mercado nacional.
Mesmo a dor é explorada pelo neoliberalismo. Se Foucault se utilizou da noção de poder para compreender as relações na sociedade pré-capitalista industrial, agora não se trata mais do biopoder, mas do controle psicológico. A terapia, ferramenta tão importante para a saúde mental, é utilizada como meio de cura de qualquer barreira que impeça a produção inesgotável, que cause entrave entre seu corpo e mente e o máximo de produção que for possível. A dor de querer ser mais e alcançar seus limites físicos e morais é usada pelo neoliberalismo. Não é mais um processo de cura, e sim suicídio.
Na imagem: Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central do Brasil.
Neoliberalismo e precarização da experiência social
Após a crise de 2008, a economia global foi submetida ao fantasma da iminência da crise que está sempre avizinhando o sistema-mundo organizado pelo capitalismo internacional. O medo da crise, o espectro que ronda o capitalismo, demanda dentro da racionalidade econômica da sociedade da propriedade privada e financeira dos meios de produção e endividamento, o constante cuidado, o eterno resguardo do erário público. A crise é a tragédia por vir e para evitá-la, o Deus Mercado demanda o sacrifício de milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Uma crise econômico-financeira que irrompeu em 2008 com a falência do Lehman Brothers sendo comparada somente a quebra da bolsa de valores americana em 1929, se configurou como a primeira crise global do mundo globalizado, além de simbolizar a primeira grande derrocada do capitalismo desde a derrota do bloco socialista com a queda do muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991. Mais que o rebaixamento do capitalismo financeiro, essa crise foi a expressão do apocalipse da imortalidade de um sistema. Absolutamente nada mobiliza mais o medo do que o fim do mundo. Desde a crise de 2008, o medo virou um instrumento institucional de gestão da sociedade.
Segundo Jérome Baschet:
Em suma, o neoliberalismo aparece como um estado de crise, alimentado pela volta ao mundo dos crashes financeiros e instrumentalizados para fins de um governo pelo medo. Portanto, a crise aberta em 2007-2008 não poderia ser sustentada por um simples artifício das técnicas de governança neoliberais, nem tratada como antes sob o modo das desordens na bolsa. Seu alcance é inédito (desde 1929-1933) e ela foi qualificada, de maneira acertada como a primeira crise global do mundo globalizado. (BASCHET, 2021, p. 17)
A crise, não obstante, jamais fragilizou o caráter imperecível do capitalismo. O estado de crise permanente é, justamente, a estratégia central de universalização do neoliberalismo enquanto forma de expressão do sistema produtivo. As prioridades do Estado não capturadas pela economia, um santuário religioso é formado dentro das instituições em nome de uma entidade que se tornou a divindade irrevogável da política. O sistema capitalista se tornou o Deus que matou o Leviatã (Estado) e a espada que executou este assassinato foi o neoliberalismo.
O neoliberalismo é a morte do contratualismo, o Estado se esgotou no seu papel de supostamente proteger as pessoas em troca da sua liberdade. A promessa que sacrificou o estado de natureza, a liberdade humana e representou a defesa da sociedade moderna da coisa pública, do direito e do apogeu da liberdade foi sequestrada. O Estado não mais protege, em teoria, a sociedade que garante o desenvolvimento humano em conjunto, agora o Leviatã é objetivamente um cadáver cujo espírito foi aprisionado e transformado em um vulto que assombra os condenados da terra e protege as classes dominantes.
Apesar da obsessão neoliberal pela austeridade fiscal, a redução agressiva do gasto público protagonizada pelo esvaziamento orçamentário das políticas sociais e da capacidade do Estado de incidir no desenvolvimento nacional, justificadas pelo superendividamento, o papel estatal no teatro do neoliberalismo não se perde completamente. Pelo contrário, a política de austeridade que significa a morte orçamentária do aparato institucional de promoção e defesa de direitos como Sistema Único de Saúde (SUS), Sistema Único de Assistência Social (SUAS), Previdência Social e o investimento em educação, necessita da atuação política do Estado.
O neoliberalismo demanda uma forma de governança política própria e instrumentaliza a capacidade pública para viabilizar a reificação da vida social:
[...] o neoliberalismo não significa que o Estado desaparece diante dos ditames do mercado, mas que ele coloca suas técnicas de governamentalidade a serviço do mercado. O Estado desempenha de fato o papel decisivo na transformação neoliberal da relação entre o social e o econômico: enquanto o Estado-providência preservava uma certa autonomia do social, o Estado neoliberal é o agente da plena submissão da sociedade à economia (BRASCHET, 2021 p. 27-8)
Desta forma, o neoliberalismo se expressa, além do campo econômico, como uma forma de administração pública, como um determinante da capacidade e alcance das políticas públicas e instrumentaliza as determinações constitucionais submetendo-as à vontade do mercado. No Brasil, essa expressão do neoliberalismo ganhou forma específica nas reformas realizadas no âmbito do Congresso Nacional em 2019, que criou o orçamento secreto que faz sangrar o orçamento para um parlamento hegemonizado pelos representantes dos setores arcaicos e agressivos das classes dominantes do Brasil. O Poder Legislativo brasileiro ganhou a capacidade de sequestrar qualquer projeto de governo e realiza a infâmia em nome do neoliberalismo.
O neoliberalismo e o caráter da ideologia reacionária nacional
O autoritarismo brasileiro, segundo Clóvis Moura, se baseou na instrumentalização do Estado para a desumanização da maioria da população. Essa, por si só, poderia ser a definição geral do neoliberalismo. Ao analisar os efeitos da Lei Eusébio de Queiroz[1], Moura percebe que a capacidade institucional do Estado brasileiro foi aparelhada para garantir o fluxo ilegal de escravizados no Brasil e manter clandestinamente o desenvolvimento do modo de produção escravista. Autoridades portuárias, delegados, militares, servidores da burocracia e, até mesmo, a família real, realizavam esquemas internos para que a máquina pública seguisse mantendo o tráfico internacional de escravizados no país. Sendo assim, o autoritarismo brasileiro, enquanto instituição, nasce do aparelhamento do Estado em nome da desumanização da população.
O resultado de políticas como o arcabouço fiscal, os ataques aos pisos constitucionais da saúde e educação, a redução dos investimentos em áreas essenciais da assistência social, enquanto os partidos tradicionais das classes senhoriais atuam como fiadores políticos da sangria do orçamento para o Congresso Nacional e para o bolso das instituições financeiras. Em 2022, 46,3% do orçamento nacional foi gasto com a dívida pública, em 2023 foram R$ 614,55 bilhões em juros. Devido ao Teto de Gastos de Michel Temer aprovado em 2016, a Saúde perdeu R$ 45,1 bilhões nos últimos 6 anos[2]. Não existe outra definição possível para esse processo que não seja o aparelhamento do Estado em nome da desumanização da população trabalhadora, negra e periférica. O neoliberalismo, no ethos colonial do país, é mediado pelo autoritarismo brasileiro.
O mito neoliberal de que aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade assim estão porque são fracos, incapazes de vencerem na competitividade natural do capitalismo encontra respaldo na ideologia reacionária nacional que é formada pela idealização do escravismo brasileiro formulado por Gilberto Freyre e o pensamento social nacional da primeira metade do século XX.
Em sua obra, Negro: de bom escravo a mau cidadão, Clóvis Moura analisa a ideia que coloca a população negra como incapaz de ser incluída no mundo do trabalho livre e assalariado. Quando a sociedade brasileira racista observa que, após a escravidão, os negros passaram a compor a criminalidade, as favelas, os piores empregos existentes no mundo do trabalho, passaram a formar o contingente populacional vivendo nas ruas, elabora-se ideologicamente a perspectiva de que essa situação ocorre em detrimento a inferioridade racial e não ao processo de 380 anos de escravidão e de uma alforria que não foi procedida por um processo de inclusão social e produtiva. Mediada pelo mito da democracia racial, instrumento de amortização das contradições sociais e econômicas do Brasil, essa percepção passou a considerar o negro um bom escravo e um mau cidadão.
A mitologia capitalista da meritocracia é, portanto, uma das expressões mais reacionárias do Brasil porque é baseada no pressuposto da inferioridade racial do negro e no saudosismo com a escravidão, o passado ideal que os brancos recorrem para elaborar o mundo no qual o negro não configura as piores estatísticas do país. Esse mundo é justamente aquele onde o negro não é considerado um ser humano. O neoliberalismo brasileiro está, dessa forma, condenado ao fascismo. Por razões como essa, figuras políticas como Pablo Marçal representam o que há de mais violento na defesa do neoliberalismo e se tornam expoentes da extrema-direita por corresponderem ao saudosismo reacionário da sociedade brasileira.
Em uma sociedade fundada sobre o colonialismo, o capitalismo não possui um caminho que não seja o da manutenção da desumanização do seu povo e o neoliberalismo enquanto a aposta capitalista dobrada, organiza a forma mais violenta possível desse processo. O neoliberalismo submete o Estado à economia e no Brasil ele é fundado sobre o escravismo, o açoite, o genocídio, o estupro sistemático das mulheres negras e indígenas. A forma neoliberal é um tipo de continuidade desse genocídio através da destruição dos direitos conquistados pelo povo brasileiro, da negação do acesso e precarização da experiência social. Cortes de bilhões em saúde é também uma forma de genocídio. Cortes de bilhões em benefícios sociais é também uma forma de genocídio. Capturar o orçamento e direcioná-lo aos cofres dos bancos é também uma forma de genocídio. O neoliberalismo, enquanto projeto de sociedade, é a escolha de deixar o povo brasileiro morrer.
O neoliberalismo é completamente incompatível com qualquer valor político, social e econômico que se oponha à violência reacionária do fascismo brasileiro. Florestan Fernandes aponta que a situação do negro é o parâmetro da democracia, seja ela burguesa ou socialista. Frente ao que custa à população brasileira, sendo mais da metade negra, o neoliberalismo impõe um axioma - o Brasil jamais será democrático sem a superação do neoliberalismo.
Aprofundando nessa perspectiva:
Quando democratizarmos, realmente, a sociedade brasileira nas suas relações de produção, quando os polos do poder forem descentralizados através da fragmentação da grande propriedade fundiária e o povo puder participar desse poder, quando construirmos um sistema de produção para o povo consumir e não para exportar, finalmente, quando sairmos de uma sociedade selvagem de competição e conflito, e criarmos uma sociedade de planejamento e cooperação, então, teremos aquela democracia racial pela qual todos nós almejamos. (MOURA, p. 220, 2014)
Nossa sociedade, submetida às amarras do neoliberalismo, caminha em uma rota divergente de um mundo realmente democrático, não somente do ponto de vista racial. Em seu conhecido texto Necropolítica, Mbembe reforça a perspectiva de que nos campos de morte os sujeitos são desprovidos de status político, o que, no limite, se trata de cidadania, o reconhecimento e exercício de seus direitos previstos no arcabouço constitucional que fundamenta o desenvolvimento jurídico de um Estado. O campo é a completa ausência do exercício de qualquer direito. Portanto, a desumanização do sujeito ali submetido está sujeita à vontade e aos instrumentos de seus algozes, assim como a morte como determinação final do seu propósito.
No neoliberalismo, como forma de gestão da economia capitalista, o status político da população permanece apenas formal, ocorrendo o esvaziamento dos direitos sociais, de saúde e educação em nome dos direitos econômicos das classes dominantes. Tampouco importa o efeito material direto que a austeridade gera aos milhões de brasileiros e suas consequências a curto, médio e longo prazo para a vida das famílias. A austeridade, principal infantaria neoliberal é a morte de qualquer direito e a determinação final da ausência do direito ou de seu esvaziamento. O estandarte do neoliberalismo é a morte e, no caso brasileiro, seus porta-bandeiras são os representantes políticos da entidade mercado, os dirigentes escolhidos pelas classes dominantes com a missão de ajoelhar a Constituição Federal e domá-la pelo pescoço.
O neoliberalismo, através da austeridade fiscal, promove o rebaixamento da democracia. Faz com que a descrença da população materialmente esmagada pela desigualdade social defina o tom da política nacional se expressando nas urnas, levando em 2022[4] a 58.206.354 votos em Jair Bolsonaro, mesmo após o líder do fascismo brasileiro causar a morte de mais de 700 mil brasileiros, assim como o Deputado Federal Nikolas Ferreira, que foi o deputado mais votado do país naquele pleito.
Com a palavra de quem melhor retratou a pobreza e a fome no Brasil, Carolina Maria de Jesus: “O custo de vida faz o operário perder a simpatia pela democracia”. As milhares de páginas já escritas sobre a ascensão da extrema-direita no Brasil e a sua capacidade política poderiam ser substituídas por apenas essa frase. Desta forma, concluímos: o neoliberalismo simboliza, do ponto de vista social, o fim.
*Rafael Torres é Editor-Geral da Revista Clio Operária, educador e comunicador popular, historiador, graduando em Serviço Social e co-autor do e-book “Os Desafios para a Revolução brasileira”.
*Vinicius Souza é historiador, especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais. Estuda e escreve sobre os temas da filosofia política e história social brasileira. Tradutor e curador do livro “Há uma Revolução Mundial em andamento: discursos de Malcolm X” (LavraPalavra Editorial).
[1] A Lei Eusébio de Queiroz assinada pelo Imperador Dom Pedro II em 1850, respondendo à pressão internacional dos ingleses pelo impulsionamento do capitalismo industrial, proibiu o tráfico internacional de escravizados.
Referências
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica, o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. 10ª edição. São Paulo: Editora Âyiné, 2023.
CASARA, Rubens. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.
KONDER, Leandro. A questão da ideologia. 1ª edição. São Paulo: Expressão Popular. 2020.
HARVEY, David. O neoliberalismo, história e implicações. 5ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. Editora Ática: São Paulo, 1988.
MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. 2. ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois e Anita Garibaldi, 2014.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.
BASCHET, Jérôme. Adeus ao capitalismo: autonomia, sociedade do bem viver e multiplicidade dos mundos. Glac Edições. Autonomia Literária: São Paulo, 2021.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.
MOURA, Clóvis. O negro: de bom escravo a mau cidadão. São Paulo: Editora Dandara, 2021.
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