Por Marcos Morcego*
Policiais em operação no Rio de Janeiro - Foto: Carl de Souza/AFP (disponível em: https://images.app.goo.gl/XZbrcMshCL9eYJTeA)
A violência no centro da disputa: os tentáculos do Estado capitalista
Desde o momento em que o Estado capitalista começa a se originar a violência se fez presente, para despossuir e para atacar os despossuídos. O objetivo da tomada de áreas geográficas, seja com as políticas de cercamento na Inglaterra, seja nas colonizações e neocolonizações, o que era uma tomada de uma localização, demonstrava o objetivo daquilo que Bernardo Mançano Fernandes define como “território relacional”, o território em sua completude, em sua multidimensionalidade, “na perspectiva da inseparabilidade materialidade/imaterialidade do conteúdo e do contido”[1]. Portanto, se buscava capturar, controlar e/ou exterminar o território e tudo o que estivesse ali presente.
O capitalismo e o Estado que estavam em formação começam projetando essa dominação, tanto de forma interna, com o fim do feudalismo, mas também com a expansão colonial. Muitos disseram que era o sistema universal, chamando-o, inclusive, de mais alto grau de desenvolvimento social, naquela famosa ideia de Francis Fukuyama de que as democracias liberais e o livre mercado seriam o fim do desenvolvimento sociocultural da humanidade. Hoje, no neoliberalismo, desde a mais democrática das sociedades liberais vemos que o próprio desenvolvimento capitalista quer decretar o fim, da humanidade e da biodiversidade como conhecemos. O neoliberalismo veio como mais uma afirmação de que o lucro está acima de qualquer coisa, e de que a qualquer custo a acumulação terá seu ritmo acelerado, por um pequeno grupo (burguesia, latifundiários e certos grupos políticos), enquanto 99% das pessoas serão exploradas até a última gota de sangue, e a natureza será explorada até a última gota de água.
A acumulação originária do capital
A acumulação chamada de primitiva, por Marx, vai ser definida “como um período de violência econômica e extraeconômica explícita”[2]. Como não nos cabe remontar toda a história de formação do sistema, partiremos do que foi esse momento. O capitalismo não basta por si só para manter a acumulação crescente constantemente, era necessário algo que abastecesse essas sociedades, como a busca por matérias primas. Mas não apenas isso, “a mais-valia só pode ser realizada por camadas sociais ou sociedades cujo modo de produção é pré-capitalista”[3], ou seja, a prática colonialista se constituía uma necessidade para o sistema que se formava. Assim como o processo de mundialização.
Em diversos períodos de crise, como a que enfrentamos, vemos que as classes dominantes viram suas garras para gerar uma massa de despossuídos, para invadir novos territórios e para subjugar, de forma violenta, ou no chamado “deixar morrer”, pois assim conseguem, de uma vez só, novos mercados, setores “não-capitalistas” para consumir e conseguem regular os salários dos assalariados. Deve-se, para isso, ocupar ou gerir o território e dominar ou assimilar suas culturas.
No primeiro momento o movimento é muito claro, “como uma questão vital, a apropriação violenta dos meios de produção mais importantes dos países coloniais”[4]. Os invasores desestabilizam o território, aniquilando as estruturas sociais das sociedades presentes, uma “luta encarniçada do capital contra a situação social e econômica dos indígenas que compreende a apropriação violenta de seus meios de produção e de suas forças de trabalho”. O capitalismo fala uma língua, a da violência. As estratégias lançadas são sempre as de qual a melhor forma de dominar, rápidos e diretos em uma constante guerra de rapina e exploração.
O Sul Global e a violência
A política colonial consistia, portanto, em desestabilizar outras sociedades e outros modos de produção. Se apoiando, desde cedo, em lógicas racistas e patriarcais, o desenvolvimento do capitalismo necessitava por um lado: das matérias primas e dos territórios, para produção e circulação de mercadorias; por outro, da melhor mercadoria para esse momento: pessoas, desumanizadas, despossuídas de suas terras, de seus modos de vida, de suas culturas, suas produções, suas línguas, suas religiões, suas relações sociais, transformadas em mercadorias, em objetos e animais, ao mesmo tempo. A violência imposta pelo Estado não era somente a armada, que continua até hoje, ao lado de uma violência ideológica e epistemológica.
As invasões coloniais e as técnicas utilizadas se diferenciam ao redor do mundo, como evidência Rosa Luxemburgo, na Índia e na China houve a injeção do ópio, buscando desestabilizar e conquistas os territórios. Na América Latina a formação e o desenvolvimento dos Estados ocorreram de formas complexas, diferentes. Desde o começo objetivou-se, aqui na região, extrair os recursos naturais, exploração e espoliação que buscava maximizar o processo originário de acumulação, ao lado da escravização de povos originários daqui e de povos africanos trazidos. Formava-se, segundo Leonardo Granato, uma “máquina burocrática”, esta que “buscava controlar o regime de exploração interna, garantir a centralização e monopolização comercial externa”, sem deixar de “consolidar a ocupação territorial e o sistema urbano”[5].
No Brasil, Jacob Gorender apontará que neste primeiro momento falamos da organização de um modo de produção escravista-colonial, que não é antagonista ao modo de produção capitalista, já que era uma das formas de alimentar a formação capitalista no que se consolidou enquanto norte global. Esse modo de produção era violento, um “processo social de coisificação que a escravidão impunha ao escravo. Processo implícito na identificação jurídica do escravo à mercadoria e no emprego constante da coerção brutal e desumanizadora contra a sua pessoa”[6]. O ser humano escravizado é colocado em uma posição de mercadoria, assim como o terreno ocupado e o que era retirado aqui, como as matérias-primas, o processo de violência não pode ser dissociado de uma totalidade explorada que era necessária para o desenvolvimento do sistema, contando com uma particularidade, a “violência no escravismo era o direito privado do senhor de julgar o escravo e de submetê-lo a castigos físicos”.
Nesse período, chamado por Clóvis Moura de Escravismo Tardio, a desumanização imposta só consegue se concretizar quando desenraiza os povos oprimidos, algo que é sentido até hoje, num processo contínuo de desterritorialização. Os Estados capitalistas se formam não apenas enquanto uma unidade política, delimitada por um território e compondo uma nação, eles são um empreendimento comercial, “o modo escravista de produção que se instalou no Brasil era uma unidade econômica que somente poderia sobreviver com e para o mercado mundial”[7]. Por ser um modo de produção, falamos de toda a base, estrutura e relações sociais de produção, portanto, que eram pautadas na escravização social desses grupos. Muito lentamente o escravismo pleno passa ao escravismo tardio, quando surgem leis que apontam para o abolicionismo, quando as instituições começam a se modificar e quando as próprias relações de trabalho e de produção começam a se transformar. Porém foi uma mudança sem transformação, “o Brasil arcaico preservou os seus instrumentos de dominação, prestígio e exploração e o moderno foi absorvido pelas forças dinâmicas do imperialismo que também antecederam à Abolição na sua estratégia de dominação”, o racismo será utilizado como ferramenta para manter o ordenamento social, o nosso inimigo mais longevo: o latifúndio, permanece unidade fundamental, o trabalho escravo é uma constante, a violência epistêmica permanece até hoje, as instituições ainda hoje impõem barreiras para grupos racializados e minorizados, a violência policial é um fato cotidiano na vida de moradores das periferias, quebradas, favelas, quilombos, aldeias, assentamentos. O central é: desde a invasão até os dias de hoje é permanente o caráter de dominação territorial, cada vez mais buscando expandir o domínio do capital.
O braço armado do Estado
Desde Gramsci[8] temos uma representação mais concreta das formas pelas quais a dominação age, de um lado buscando construir o consentimento, através de instituições, ou ainda aparelhos ideológicos de Estado (AIE) segundo Althusser[9], que são instituições que moldam as pessoas ideológica e materialmente para a aceitação do sistema. De outro lado temos os elementos repressivos, com as polícias e guardas municipais, no Brasil, sendo os grandes exemplos. O controle social, seja pela forma que der, pela estruturação escolar, pela forma esmagadora que o trabalho é imposto, pelas formas ideológicas e/ou repressivas, são a chave para a manutenção do poder capitalista.
Fausto Salvadori pontua que “quando as forças policiais foram criadas, nos primeiros anos do Brasil Independente, esse inimigo interno tinha o rosto das camadas negras escravizadas e dos movimentos abolicionistas, além dos grupos rebeldes descontentes com o governo”[10]. Desde as primeiras incursões coloniais, posteriormente com os bandeirantes e outras forças de invasão e dominação eram lançadas, tanto no controle de povos africanos trazidos do continente africano, mas também dos povos indígenas que estavam no território que foi invadido e batizado de Brasil.
O melhor exemplo, novamente, é Palmares, em que contra essa nova possibilidade de formação social “uniram-se a Igreja, os senhores de engenho, os bandeirantes, as estruturas do poder colonial, as tropas mercenárias, criminosos com promessa de liberdade e, finalmente, toda a estrutura escravista que não desejava a continuidade de Palmares”, como lembra Clóvis Moura. Por baixo, nas histórias mais humildes, Palmares resistiu e existiu por 65 anos. Foram pelo menos 16 tentativas de destruição de Palmares, duas pelas forças holandesas e as outras já pelas autoridades portuguesas. O Estado em formação não podia suportar qualquer forma alternativa, qualquer grupo que buscasse sair da relação escravista-colonial. A única forma encontrada, era o massacre. Os genocídios fazem parte de toda a história do desenvolvimento do Capital, não só como controle social, mas para ditar toda a história, promover, também o apagamento histórico[11].
As polícias, no Brasil, vão se relembrar do aparato chefiado por Tomé de Souza, lá em 1549, também com “as Companhias de Ordenanças”, no século 16, já no século 18 tínhamos as “Companhias de Dragões”, que fortaleciam a institucionalização das forças policiais e profissionalizavam essa área, a própria Polícia de Minas Gerais tem como data de nascimento “o Regimento Regular de Cavalaria de Minas”, em 9/07/1775, eles que surgem a partir do caso de Vila Rica, cuja história aparece na música de mesmo nome de Don L. Nos EUA a base foi o que era chamado de Slave Patrols, ou seja, patrulhas de escravos, eles surgem não para defender o desenvolvimento urbano, mas para manter o controle social durante a escravidão, defendendo os bens, as mercadorias e a propriedade privada: a terra[12].
A era Vargas e a ditadura militar dão um novo impulsionamento, o neoliberalismo consegue enquadrar de forma extremamente profissional a individualização, separando as violências do contexto geral, mas também trazendo um processo de normalização, ou de hiper normalização de situações, esticando o tecido social e tornando a opressão algo cotidiano e esperado na sociedade, com grande papel para os programas de populismo penal midiático[13]. Manter o aspecto de normalidade[14], ao mesmo tempo em que se avança sobre o controle ideológico[15].
Tudo isso permite que o uso da violência seja aceito, pedido, seja o cotidiano e se replique nas mais diversas formas na sociedade. O território enquanto relacional, é invadido pelo Estado, é a forma de torná-lo “funcional às necessidades, usos e apetites”[16] dos poderosos e de suas empresas, se torna, portanto, a própria identidade, agora individualizada e fragmentada.
Conclusão: O neoliberalismo e o mal-estar
Então chegamos em uma fase de mal-estar, que se reflete não só em estarmos tristes[17], em não sairmos de um espírito que se apresenta como eterno, de imobilidade. Mas falamos sobre a desesperança, falamos sobre não conseguirmos mais inventar novos mundos, nem ao menos imaginá-los. A hiper normalização torna tudo possível, menos a mudança, “agindo como uma espécie de barreira invisível, bloqueando o pensamento e a ação”, busca formar essa imobilidade. Além de individualizar, “a figura da sociedade do controle é a do endividado/viciado. O capital do ciberespaço opera viciando seus usuários”[18].
Nos vemos envoltos nessa rede, principalmente em sociedades urbanas e tecnológicas, com um sistema de informação que altera e acelera o tempo, em que os horários de trabalho nos esmagam e que todo e qualquer direito deve se tornar mercadoria. Mas, se lembramos Rosa Luxemburgo, existem territórios que ainda não foram, pelo menos não completamente, tomados pelo capital, e muitas vezes nem se busca trazer as pessoas para seu lado, mas exterminar.
Seja na Palestina, seja no território invadido e chamado de Brasil o avanço por políticas de morte é uma constante, lá surgem ocupações e frequentes genocídios, agora com uma guerra final que busca devastar todos palestinos e palestinas, e aqui com forças como a Invasão Zero[19]. Além da retirada de direitos, buscando, mais uma vez, tornar tudo o que existe enquanto mercadoria, a comida, a terra, a água, o ar, as pessoas.
Como reafirmamos durante o artigo, o objetivo é a tomada de todo e qualquer território possível. O capitalismo, mesmo em crise, ou como alguns alegam, em colapso, mesmo quando fala sobre mudança, sobre frear seu impacto, no concreto não para de acelerar, não para de explorar, oprimir e reprimir, buscando uma uniformização do sistema, política, econômica e cultural, toda e qualquer alternativa é uma ameaça, mas mesmo quando não há essa ameaça há território para ser tomado, ele não irá parar.
Sim, o texto é pesado e sim, tem muito o que completar, essas lacunas e esse peso estão de propósito, as alternativas não podem sair deste texto, assim como ele só poderá avançar conforme realizemos as transformações. Somente a práxis, a aliança entre prática e teoria, o entendimento do capitalismo associado ao seu enfrentamento é que pode trazer possibilidades concretas de transformação. Os povos, as pessoas oprimidas, nunca pararam de lutar. O território é o centro da vida e o capital sabe disso, também sabe como mercantilizar para obter lucros, se defendemos a vida (e aqui, não apenas a vida humana, mas em toda a sua complexidade), defendemos o fim do capitalismo. É essa tensão que está posta.
“A exploração só e unicamente poderá acabar se for abolida a venda da força de trabalho, isto é, o sistema do assalariamento” Rosa Luxemburgo[20]. Como disseram Mestre Joelson e Erahsto Felício em Por Terra e Território, “eles precisam destruir mais rapidamente as águas, as matas, os mangues, as serras e tudo que é vivo, porque, a cada dia que passa, suas taxas de lucro caem, e precisam produzir mais e vender mais”, tudo se torna zona de sacrifício, espaços para serem explorados. E continuam, “o lucro deles é a destruição rápida e veloz de nossos territórios, de nossos biomas. A resposta para isso está em ocuparmos a terra com formas de uso e geração de riquezas que respeitem o ciclo da vida da natureza”.
*Marcos Morcego é editor e articulista da Clio Operária, comunicador político pela Caverna do Morcego, estudante de Ciências Sociais (FFLCH-USP), pesquisador sobre Identidade, Território e Organizações Políticas e autor do livro "Por uma implosão da Sociologia"
Referências:
[1] Agroecologia: ciência e política. Peter M. Rosset e Miguel A. Altieri. Expressão Popular, UFRGS Editora e Editora Unesp.
[2] Discurso filosófico da acumulação primitiva: estudo sobre as origens do pensamento moderno. Pedro Rocha de Oliveira, pela Editora Elefante.
[3] A acumulação do capital. Rosa Luxemburgo. Editora Civilização Brasileira.
[4] A acumulação do capital. Rosa Luxemburgo. Editora Civilização Brasileira.
[5] O Estado Latino-Americano: teoria e história. Leonardo Granato. Expressão Popular.
[6] A escravidão reabilitada. Jacob Gorender. Expressão Popular.
[7] Dialética Radical do Brasil Negro. Clóvis Moura. Anita Garibaldi.
[8] Recomendamos, para expandir o debate a leitura de: O Estado no centro da mundialização. Jaime Osório. Expressão Popular.
[9] Um dos livros clássicos de Louis Althusser: Aparelhos Ideológicos de Estado, pela Editora Paz & Terra.
[10] Prefácio do livro: História da polícia no Brasil. Almir Felite. Autonomia Literária.
[11] Para aprofundamento no assunto, Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. Clóvis Moura. Anita Garibaldi.
[12] Essas experiências são relatadas no livro: História da polícia no Brasil, de Almir Felite pela Autonomia Literária.
[13] Vídeo do Chavoso da USP sobre o tema:<JORNALISMO POLICIAL, PORQUE VOCÊ DEVERIA PARAR DE ASSISTIR>.
[14] Recomendamos aqui assistir ao documentário: Hypernormalization que pode ser encontrado legendado no Youtube e é de autoria de Adam Curtis.
[15] Outro documentário de Adam Curtis que pode ser encontrado no Youtube legendado e aborda este tema: The century of self”.
[16] Por uma outra globalização. Milton Santos. Grupo Editorial Record.
[17] Não falamos apenas de tristeza, mas também de depressão e ansiedade, que, diferente do texto do senado aqui referenciado, não são os vilões, já que um sistema de exploração está por trás: <Ansiedade e depressão são os principais vilões da saúde mental — Portal Institucional do Senado Federal>.
[18] Trechos retirados de: Realismo Capitalista. Mark Fisher. Autonomia literária.
[19] Quem está por trás desse grupo paramilitar de extermínio? <'Invasão Zero': quem está por trás do grupo | Direitos Humanos>.
[20] Pode ser encontrado o texto em: Rosa Luxemburgo: Textos escolhidos volume 2 (1914-1919). Isabel Loureiro. Editora Unesp.
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