Tradução: Pedro Silva
Introdução: Rafael Torres
O filósofo alemão Herbert Marcuse e Angela Davis fizeram parte do mesmo círculo acadêmico filosófico nos anos 1960/70, bem como tomaram parte e influenciaram, cada um à sua maneira, o efervescente cenário político estadunidense do período. Em carta enviada ao cárcere onde Davis se encontrava em 1970, Marcuse afirma o quanto aprendeu com a ativista que rompeu as fronteiras da universidade e converteu seu pensamento crítico em prática revolucionária.
Herbert Marcuse e Angela Davis, sem data (Reprodução).
Introdução
A relação entre Herbert Marcuse e Angela Davis era muito estreita, e isso pode impressionar a muitos, mesmo os estudiosos da teoria crítica.
Marcuse era alemão, nascido ainda no século XIX; Davis é norte-americana, nascida no contexto efervescente da Segunda Guerra Mundial. Nada além da luta pela libertação poderia unir os dois.
Marcuse buscou exílio nos Estados Unidos e, lecionando Filosofia, foi mentor de Davis na universidade. Angela é um expoente da luta pela libertação negra, luta essa que, em sua práxis, foi internacionalizada. A conexão entre os dois se concretiza pela necessidade de reconfigurar o modo segregacionista e excludente que é parte inerente do capital. A relação entre os dois não é meramente teórica, mas de admiração, de troca, de proximidade. Marcuse ensinou à Angela a teoria, e ela transformou em prática o ensinamento. Os dois representam a síntese do marxismo.
Querida Angela
Publicada originalmente no número 9 da revista Ramparts, Berkeley, Califórnia: fevereiro de 1971, p. 22.
18 de novembro, 1970
Querida Angela,
Fiquei desconfortável quando me pediram para fazer a introdução da publicação das duas primeiras palestras sobre Frederick Douglass que você deu na U.C.L.A. em outubro de 1969. Sei que, “em circunstâncias normais”, você não teria autorizado a publicação delas na forma em que foram entregues. Além disso, elas lidam com um mundo do qual ainda sou um leigo — posso dizer algo sobre isso de forma autêntica? E, por fim, você foi minha aluna em filosofia, e eu ensinei filosofia; sua tese seria sobre um problema em Kant: o que sua vida pela libertação do povo negro, o que sua situação atual tem a ver com a filosofia do Idealismo Alemão?
Então, no entanto, peguei o projeto que você escreveu para sua tese e li a seguinte frase: “A noção (em Kant) de que a força fornece o elo entre a teoria e a prática da liberdade leva de volta a Rousseau...” Então há um elo, um elo interno entre a teoria e a prática, entre o conceito e a realidade (ou melhor, a realização) da liberdade? E lembro que critiquei a noção de Sartre de uma liberdade que é verdadeiramente inalienável e pode ser praticada mesmo na prisão, mesmo em um campo de concentração, a saber, a liberdade de recusar a submissão, a liberdade de rejeitar a falsa identidade que os senhores impõem a seus escravos. Critiquei essa noção porque me pareceu que a livre escolha entre a escravidão e a morte ou prisão perpétua não é liberdade, que zomba da liberdade humana. E agora eu li em sua palestra como, um dia, “Frederick Douglass reúne coragem para resistir ao cruel senhor de escravos a quem ele é enviado para ser domesticado, ser domado, o senhor de escravos que é infinitamente mais brutal do que qualquer um de seus senhores anteriores...” Frederick Douglass um dia revida, ele luta contra o senhor de escravos com toda a sua força, e o senhor de escravos não revida, ele fica tremendo; chama outros escravos para ajudar, e eles se recusam. O conceito filosófico abstrato de uma liberdade que nunca pode ser tirada de repente ganha vida e revela sua verdade muito concreta: a liberdade não é apenas o objetivo da libertação, ela começa com a libertação; ela está lá para ser “praticada”. Isso, confesso, aprendi com você! Estranho? Eu não acho.
E tem mais. Anos atrás, tivemos um seminário sobre Hegel. Lemos, entre outros textos, o famoso capítulo sobre a dialética do Senhor e do Escravo na Fenomenologia do Espírito. Ele termina com o reconhecimento da dependência do Senhor em relação ao Escravo, que supera a dependência do Escravo em relação ao Senhor. Em sua palestra, você discute a Fenomenologia, e a análise filosófica de Hegel ganha vida na luta em que o escravo negro estabelece sua própria identidade e, assim, destrói o poder violento do senhor.
As pessoas me pedem repetidamente para explicar como você, uma jovem mulher altamente inteligente e sensível, uma excelente aluna e professora, como você se envolveu nos violentos eventos em San Rafael. Não sei se você estava envolvida de alguma forma nesses eventos trágicos, mas sei que você estava profundamente envolvida na luta pelos negros, pelos oprimidos em todos os lugares, e que você não podia limitar seu trabalho por eles à sala de aula e à escrita. E eu acho que há uma lógica interna em seu desenvolvimento e no desenvolvimento das coisas – uma lógica que não é tão difícil de entender. O mundo em que você cresceu, seu mundo (que não é o meu) era de crueldade, miséria e perseguição. Reconhecer esses fatos não exigia muita inteligência e sofisticação, mas perceber que eles poderiam ser mudados e deveriam ser mudados exigia pensamento, pensamento crítico: conhecimento de como essas condições surgiram, quais forças as perpetuaram e das possibilidades de liberdade e justiça. Isso, eu acredito, você aprendeu em seus anos de estudo. E você aprendeu uma coisa, a saber, que quase todas as figuras célebres da civilização ocidental – a mesma civilização que escravizou seu povo – estavam, em última análise, preocupadas com: a liberdade humana. Como qualquer boa aluna, você levou a sério o que eles disseram, e pensou seriamente sobre isso, e por que tudo isso permaneceu como mera conversa para a vasta maioria dos homens e mulheres. Então você sentiu que a ideia filosófica, a menos que fosse uma mentira, deve ser traduzida em realidade: que ela continha um imperativo moral para deixar a sala de aula, o campus, e ir ajudar os outros, seu próprio povo a quem você ainda pertence – apesar de (ou talvez por causa de) seu sucesso dentro do Establishment branco.
Mas você lutou por nós também, que precisamos de liberdade e que queremos liberdade para todos que ainda não são livres. Nesse sentido, sua causa é a nossa causa.
Em solidariedade,
Herbert Marcuse
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